sexta-feira, 19 de julho de 2024

Sobre um cofre no peito.


É de uma longa caminhada que venho, e foi nesse processo de muitos anos que fui aprendendo a sanear meus comprometimentos. Não por mero rigor de sofisticação, mas pela necessidade de me curar do que me feria sem tanta demora e pela imperativa e categórica urgência de viver. Me demorar em sofrimentos já custou demais. Obstaculizar a desistência em dolorosas insistências me cobrou a excruciante e irreparável perda de muito tempo. Sei o que investi sem retorno. Sei o que perdido está e quanto me custou saber hoje do que sei. E é por tanto investido que preciso agir e atuar como alguém que sabe bem mais sobre como se equivoca melhor. 

Em meio a tanto meu coração foi se expandindo, fazendo puxadinhos e construindo cômodos, corredores, labirintos. Tá enorme! No que compõe o que sou é hoje em definitivo o meu metro quadrado mais caro. Tem vista, é arejado, hora por janelas, hora pelos rombos enormes que já fazem parte da construção. Emolduram a vista de dentro pra fora. É alto e, confesso, um pouco devassado. Mas estar vivo é estar visto, ouvi dizerem. Eu topo. 

E é em algum canto dessa construção um pouco gótica, um pouco modernista mas de fundações inquestionavelmente barrocas que eu construí um cofre, uma casa forte, um cômodo de paredes de aço. Ali eu guardo uma coleção de arte/fatos só meus. Iras enormes. Amores intensos. Uma coleção de tesões secretos e inconfessáveis. Mágoas. Pequenos instantes de felicidade preciosíssimos que eu jamais exporia a ninguém ao passo que entendo que não saberiam apreciar a delicadeza que têm pra mim. São as coisas que, pretendo, naufragarão comigo quando eu afundar junto ao meu navio. Não pretendo dividi-las com ninguém senão assim, de modo incerto e abstrato. 

Egoísmo? Talvez. Posse, quem sabe. Apego, sem sombra de dúvidas. É que tem coisas que já não vale a pena. Aprendi a me resignar. Foi difícil mas necessário. Aprendi a aceitar o não da vida e das pessoas com quem nela encontro. Sei que há discussões e querelas que secaram feito um ramo, ainda que dela eu guarde uma flor seca nas páginas de um livro num trecho específico da história que só eu sei o porquê. 

É minha a cena, são minhas as palavras não ditas e será pra sempre minha a secreta e já despretenciosa percepção dos fatos. A minha vida quem conta sou eu. E no que se fecha enquanto capítulo eu me recuso a dar a quem não faz mais parte da história a autoridade de participar de qualquer tipo de revisão. Eu prefiro o meu ponto de vista. Já que da minha história quem goza e sofre sou eu, também sou eu quem seguro a pena. O que fica de tudo que vivi pertence intensamente a mim. 

O que me dou a conflitar e discutir e debater é com o que segue vivo, com o que segue em disputa e em processo de (in)definição próprio das coisas que estão vivas. Essas outras coisas eu guardo do que já passou ou do que, ainda que com pernas por aí caminhando, para mim já morreu. Vivo assim com meus mortos. Lhes tenho o apreço que tenho (não por mérito deles), o respeito que de mim conquistaram (de novo, não por mérito), e o silêncio de sabe-los já não mais "aqui". 


Phelipe Ribeiro Veiga
Rio, 19 de Julho de 2024. 14h48

"y hay que entender que, muchas veces, 
solamente seremos
la forma que escogimos
para irnos." (Miguel Gane) 


quarta-feira, 3 de abril de 2024

(...)




Eu vi uma casa se despir.
Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por longo período um acessório leva na pele as marcas dele. Apagou as luzes como quem limpa, borrando a cara, a maquiagem. Desmontou os móveis e os empilhou como quem desmonta todo um figurino e cuidadosamente o dobra sobre a areia fofa. Eu vi a casa se despir de costas pra mim sem dizer nada. Quando já completamente nua ela me olhou e eu a olhei de volta. No detalhe de tudo que a compunha rememorei as alegrias e as agruras que tive em seu corpo agora tão oco e habitado por ecos. Jazia vazia, tão nostálgica como só um túmulo cheio poderia se comparar. Trocamos mais olhares. Fitei suas janelas nos olhos e sorrimos um pro outro com a discrição secreta de quem olha pelas fechaduras. Nos agradecemos mudos com a sensação de uma  intima cumplicidade. Como dois amantes que desfrutaram um do outro em comunhão justa e real, ambos em paz com a conjugação madura dos prazeres e pesares. Então ela iniciou sua marcha.

Dali ela caminhou lenta a entrar num mar de memória (de)composta de tanta coisa. Eu a via como quem assiste um por do sol que lentamente deixa de estar, deixa de ser. Entrou no mar e se diluiu feito o menino de água de Hugo Mãe, feito Alfonsina, agora deixando pegadas apenas nas profundezas das hipóteses e das associações que ainda virão. Nos despedimos e dali em diante ela será pra sempre passado, mesmo quando se fizer presente. 

Respirei. Tomei as coisas deixadas. 

O figurino desmontado, a maquiagem que sobrava logo ao lado, os acessórios e fui em direção oposta. Ela pertencia ao passado e a mim cabia desembrulhar todo um enorme presente. Era hora de fantasiar um novo corpo-casa. Ornamentar paredes novas com coisas novas e antigas. Ressignificar os espólios e, em memória de todas as casas que tive, desde a da velha e distante infância até as da adultes tão gentrificada, domiciliar um novo canto da feli-cidade. 

De agora em diante há um novo endereço onde chegam as minhas correspondências e entregas. 
Há! 

Rio de Janeiro, 03 de Abril de 2024.
Phelipe R Veiga

"Aprenderei a amar as casas
quando entender que as casas são feitas de gente
que foi feita por gente
e que contem em si a possibilidade
de fazer gente." (M. Campilho)

sábado, 13 de janeiro de 2024

Acheronta movebo.




O pensamento me causa sensações. Feito um animal faminto te busca. Carregado por ele, voo baixo evitando as preocupações predadoras dos meus carinhos. Voo rente às folhas no chão e próximo às raízes profundas das árvores aprendendo delas a construir profundidades. Coisa urgente! Persigo o percurso como que por instinto. A bússola do meu desejo me aponta a direção. Sinto o frescor do chão húmido da enorme floresta pela qual passo e depois subo, inevitavelmente. Sinto o vento frio da montanha que sobrevoo e, depois, o cheiro do escapamento dos carros da cidade onde você mora. Invisível, te persigo. Não demora nada, entre uma multidão de transeuntes eu te vejo. A paisagem que busco.  

Reconheço as roupas e vejo com clareza o seu corpo nu por debaixo delas. Reconto as pintas do seu pescoço para verificar se ninguém te (ou me) roubou nenhuma delas. Contabilizo as marquinhas todas do seu corpo que eu fiz de tudo para memorizar como quem conta avaro minúsculas moedas de ouro que compõem uma enorme riqueza. Depois vejo os caracóis dos seus cabelos sempre molhados balançarem na brisa. Tento inutilmente ajeitar um fio que te cai na testa e que, eu sei, te incomodaria sabe-lo ali. Não consigo. Toco o lóbulo da sua orelha e sinto a temperatura fria dela como sempre gosto de fazer. Depois eu desço. Aperto seu quadril assedioso como só em imaginação posso ser e te sinto sem você sentir. Constrangido, subo pelas suas costas como quem sobrevoa um vale imenso e, mergulhando pele adentro e espinha acima, alcanço rápido o sopé dos seus pensamentos. Resisto, por apreço à sua intimidade, à tentação de, acima do seu tronco cefálico, parar sobre a ponte e ver passar embaixo dela seu fluxo intenso. Subo de novo à altura da pele e sinto o cheiro inebriante de sua nuca. O sinto tão intensamente que você, imagino, chega a levar a mão e se coçar em reação ao meu imaginário suspiro. 

Te vejo esbarrar. Te ouço se desculpar. Aqui de onde estou, sorrio sem usar a boca ao te ver passar sem usar os olhos. Te vasculho inteiro e atesouro em hipótese o máximo de detalhes seus que posso antes de voltar, teletransportado, ao meu peito apertado e ao meu corpo tão seccionado do seu e ao mesmo tempo tão nele misturado. Retomo os imperativos categóricos da vida. Diabrura dolorosa é a distância. Eu, ateu de deuses, assumo que me curvo à onipresença da sua ausência. Mas só até onde sou obrigado. Apenas parcialmente. Porque no que posso, sempre que posso e como posso, faço de um tudo por degradá-la, ainda que em imaginação, o que por bem





 consigo. 




Rio, 14 de janeiro de 2024
Phelipe Ribeiro Veiga

"Se na bagunça do teu coraçãoMeu sangue errou de veia e se perdeu" (CB) 







quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Sobre os efeitos cronológicos do sentimento.




Os sentimentos sim é que são os senhores do tempo. 

O amor torna um fim de semana uma vida inteira. O tédio, uma hora uma semana e meia. O sofrimento, seis meses em seis anos. Os afetos pesam a mão nos ponteiros dos relógios, rasuram calendários, nos transportam pra passados, nos empurram pra hipotéticos futuros. O sentir é viajar no tempo e no espaço. É ser e estar desafiando todas as leis da física. É inclusive estar em vários lugares ao mesmo tempo, e, às vezes, dois corpos ocuparem o mesmo lugar no espaço.

Entretanto, há dentre todos, o super efeito da tristeza. A mão mais pesada sobre os ponteiros do relógio. Isso porque o sofrimento não estanca o tempo, ele estraçalha o relógio. Ele não rasura o calendário, ele o arranca da parede e o faz em pedaços, fazendo mosaicos afrontosos no chão da cozinha, de modo que você perde a noção de continuidade e já não sabe de onde veio, pra onde vai, e nem sequer a ordem dos dias da semana. Você não sabe diferenciar o ontem do amanhã, nem que dia é hoje. O sofrimento nos encapsula e nos leva pra um lugar onde ser é doer e estar é sofrer. Tempo e espaço são abolidos violentamente. E se ou quando voltamos desse passeio nefasto, envelhecemos tanto. Envelhecem os sonhos, as esperanças, a credibilidade no bonito das coisas, o apreço na percepção do mundo. Isso porque mais que tudo, o sofrimento nos envelhece o olhar.  Perder-se no vácuo anacrônico pra onde nos leva nos pode custar a vida, podemos esquecer o caminho de volta e isso pode ser a extinção de tanta coisa do que somos, mesmo pros que se preserve um coração funcional no final de tudo. 

Diante do assalto do sofrimento só nos resta achar a máquina do tempo que é o encantamento de voltar a se alegrar. "Voltar" a estar feliz é retroceder, rejuvenescer, retocar a realidade e maquiar as marcas de expressão deixadas, recuperar cores perdidas e, frequentemente, tonalidades novas. Ganharmos de volta, dizem, um tal viço, um tão falado brilho. Mas a marca indelével do passeio no vazio do sofrer jaz ali. Uma cicatriz. Jamais seremos os mesmos. Jamais teremos a mesma idade de novo.

Eu, enquanto flutuo no vácuo, reflito e concluo: 

São sim os nossos sentimentos os senhores do tempo. 
E dentre eles, é sim o sofrimento o mais nefasto inimigo das horas. 

4 de outubro de 2023 (?) 
Phelipe Ribeiro Veiga


"Dentro de um livro na cinza das horas" - (AC)


"Orfeu menos Eurídice: coisa incompreensível!
A existência sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos.
Tu és a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo,
minha amiga mais querida!
Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
." (VM) 


"São mitos de calendário 
tanto o ontem como o agora, 
e o teu aniversário 
é um nascer toda a hora" (CDA)

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Sobre a atitude furta cor.




De fato.

Furta cor a tua atitude tão rasteira, deixando o que restava de nós monocromático. Feito filme antigo, cinema mutado, como um anacronismo. O apreço ao detalhe para machucar, a especificidade minuciosa do toque na ferida aberta e em câmera lenta me surpreende. Incolor, teu furto se deu feito uma mensagem na garrafa que, ao invés de você lançar ao mar, você a atirou na minha cara com uma violência travestida de normalidade. 

É verdade que há um tempo você me disse do normal que é pra você certa agressividade no amor. "Dizemos o que dizemos e depois é só se desculpar. Assim que era", você me disse. E falamos de como pra mim, concessionário doentiamente ilimitado pra ter paz, isso era impraticável. Portanto, não há novidade na agressão, e nem há ignorância da sua parte sobre o que você fez comigo, me conhecendo tanto. A novidade está no rigor ao capricho e ao detalhe. Das múltiplas versões de ti, essa eu ainda não conhecia.  

Desconheço tamanho preciosismo por eu ter convivido tanto com sua escusada personalidade tão usualmente distraída. Torço pra que seja uma habilidade nova. E que ela seja versátil o suficiente pra que você possa exercer a mesma minuciosa apreciação do sutil das coisas não só pra ferir mas também pra fazer feliz. A você e a seja lá quem for. 

Vinicius tinha razão quando dizia que era desprovido de cor todos os momentos de despedida. Você pode não ter me ensinado o porquê, mas definitivamente me mostrou o como.

Merecíamos mais? Quanto a nós eu não sei. 
Quanto a mim, definitivamente sim. 
Não há. 

Phelipe Ribeiro Veiga
02 de outubro de 2023 - 13h46

"Entra pra ver como você deixou o lugar
E o tempo que levou pra arrumar aquela gaveta
Entra pra ver, mas tira o sapato pra entrar.
Cuidado que eu mudei de lugar algumas certezas
Pra não te magoar. Não tem porquê. Pra ajudar teu analista
Desculpa." (Cícero) 
 
"Mais tarde lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. Lembrar-se-ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação. " (VM)

"Giro um simples compassoE num círculo eu faço o mundo (que descolorirá)" (VM)


sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Sobre o meu lado da história.

Há sempre muitas maneiras de contar uma história, e a nossa eu sempre escolherei contar mesmo é pelo começo. E não porque ela tenha caído no clichê dos dias ou na rotina ensossa dos que se deixam carcomer pelo tédio e pela seguridade de um amor tácito e palpável. Não. Mas porque admiro a integridade do que fomos capazes de ser e fazer, e as boas histórias se fazem num arco crescente que carece de ser contada é pelo começo mesmo. A nossa, pra mim, será sempre assim. 

Foi com você que aprendi a gravidade das conversas, a não banalizar as reclamações e da importância do entendimento, fazendo valer bem mais o que digo do que o que falo. Aprendi que posso ser amado de modos distintos aos meus modos de amar. Aprendi que a leveza precisa ter seu lugar. Aprendi limites e aprendi da falta que faz perdê-los de vista. Aprendi o respeito e aprendi a nuclear importância da admiração. Foi em nós que aprendi a parceira e o companheirismo em sentidos para os quais eu nunca tinha me deixado ser encontrado antes. Compartilhávamos o pão sob os céus dos quatro pontos cardeais. Você me ensinou a ter pequenas e grandes coragens e a dar grande importância aos meus pequenos medos. Você me ensinou que dá pra tentar um pouco de tudo e que não custa acreditar. Além disso, também me ensinou a gostar de cebola e a beber café sem açúcar. 

Por essas e tantas coisas é que o que levo de ti não é o que a mágoa mancha, o que o medo da perda arranha nem o que o apego, tornado em aperto, acabou por produzir. O que levo é o homem com olhar e olhos de menino choroso ao pé de um barco sob um céu longe daqui me explicando que não sabia o que fazer, mas que sabia o que queria. Levo a lembrança de sua risada que ri com o corpo todo. O abraço em fuga. Os hábitos estranho e engraçados. As composições diárias e os apelidos esquisitos. A companhia que inexplicavelmente me fez ficar tanto e me faz ser tão pesado partir. Guardo de ti experiências enormes, saudades gigantescas e um grande amigo de quem sempre sentirei falta. Uma vez você, raivoso, me disse não ser extraordinário. E talvez não o seja. Talvez tampouco eu o seja. Mas foi extraordinário o que fomos capazes de ser. Foi e terá sido, pra sempre, uma grande aventura. 

Quanto a você, do seu lado, sei pouco ou nada. Mas estou em paz. Eu e minha saudade nos sentamos tarde sim, tarde também a lamuriar e trocar lembranças, e rimos de umas, choramos de outras e, fazendo o melhor que podemos, e em prol de que lembrar seja o mais gostoso possível, desviamos ao máximo dos ressentimentos, estes tão naturais de histórias longas. O meu lado da história é esse e de mim ninguém pode tira-lo. É o meu pra sempre que deu pra fazer. É pitoresco, fantasioso como todo amor precisa ser pra poder ser, e é triste como só as melhores lembranças necessariamente são. Mas, acima de tudo, ainda que só e ainda que só meu, é meu. Pra sempre. 

22 de setembro de 2023, 19h50
Phelipe Ribeiro Veiga. 

"Não, nada irá neste mundo
Apagar o desenho que temos aqui
Nem o maior dos seus erros
Meus erros, remorsos
O farão sumir.
(...) 
Nada, nem que a gente morra
Desmente o que agora
Chega à minha voz" (Caetano Veloso) 

"Barreremos cada uno ‘pa’ su casa
y quizá aprenderemos cuatro cosas nuevas,
no se borrará tu olor por más que llueva,
que el amor que deja huella no fracasa." (Juan Gomez Canca) 

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Sobre um corolário de sombras.





Pouco a pouco as coisas vão ganhando titularidades e a casa onde moro vai sendo habitada por um mobiliário estranho. Nem os quadros estão mais nos mesmos lugares, apesar de não terem se movido um centímetro. Talvez porque o que mudou foram as paredes. Faz parte desse meu cotidiano trânsito entre dois mundos. Um pé no passado e outro no presente, sob um abismo obscuro dividindo os dois a que apelidei de futuro. 

Vejo uma sombra passando da cozinha pro quarto, voltando do banheiro pra sala. Vivo eu e ela, a sombra. A sombra cobre a metade do quarto, da sala, do sofá e do meu pensamento. Dotada de toda uma autonomia, caminha daqui para acolá e faz suas coisas, e cantarola num eco distante. Ponho música alta pra ensurdecer-me e finjo não notar o fantasmagórico mover de coisas na cozinha quando já não há ninguém. Às vezes me deixa copos pra eu lavar. Eu lavo. Ela também me deixa contas pra eu pagar. Eu pago. É tributário o meu convívio com ela. 

Hoje o acordar é um gradual desvanecer do mundo ao meu redor, é assistí-lo (a) perder resoluções. E pouco a pouco a sombra dá as mãos a uma ciranda de outras sombras, compondo o pesado corolário que levo sobre a cabeça. É minha coleção de despedidas. Prêmios de minha incompetência em fazer o tempo parar. Em fazer durar chuvas de verão ou encerrar estios antes que me sequem as lavouras todas. É a repercussão desse meu timing desencontrado de todos os demais ou quem sabe é só pura má sorte ou azar, ou os dois, caso não sejam a mesma coisa. 

Ouço as portas se fecharem, todas. O virar de chave, várias. As costas caminhando em direção às escadas ou aos elevadores ou portas. Fico eu, sempre igual e na mesma situação, mão nas chaves, testa colada à madeira das portas, olhos fechados, só e assombrado pela sobra última que levo presa à planta dos pés e que me aponta o dedo acusatoriamente. Se ao menos dentre tanta sombra uma me servisse para sentar-me embaixo dela e ler um livro. Mas nem isso. Apenas me pesam a cabeça e o peito. Apenas. 

Não há.

Phelipe Ribeiro Veiga
Rio, 18 de setembro de 2023. 11h52


"Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de seccionar aqueles dois mundos que eram ele e ela. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se muito longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce." (Vinicius de Moraes) 

"It's strange what desire will make foolish people do" - Chris Isaak

Sobre um cofre no peito.

É de uma longa caminhada que venho, e foi nesse processo de muitos anos que fui aprendendo a sanear meus comprometimentos. Não por mero rigo...