Me projetar pra dentro de um espelho de armário daqueles que a gente colocava em banheiros guardando escova e pasta de dentes.
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam. (Fernando Pessoa)
Ó tu que tens nas mãos, sob os diversos sentimentos que se renovam a cada página inda não lida. Não repares se a forma é apurada ou se a métrica foi talvez torcida, olhe somente a Vida nos meus versos que a Vida do meu verso - é a minha vida" (Vinícius de Moraes)
Eu me lembro.
Quarta feira não era dia de escola.
Era dia de acordar antes do sol e ser conduzido de mãos dadas com um estranho qualquer. Um ônibus que levava a outro que levava a outro. O cheiro de poeira do banco de borracha, o vento da janela e os repetidos “não coloque a cabeça pra fora”. As mariolas e os videogames vendidos de uma rodoviária à outra. Era um amor educado. Eu ia porque me levavam e eu só descobria que queria ir quando já estava ali.
Havia o portão enorme. A fila cheia de lamúrias e histórias, mães, tias, avós. A revista. E depois a entrada.
Enfim, a voz, os olhos claros, o toque que eu nem sabia que sentia falta mas sentia. Essa ausência de saudade que eu me sentia tão culpado quando pequeno. Eu não entendia ainda, mas é que criança é esse animalzinho que se distrai até de si, e, protótipo de poeta, faz brincadeira até dos seus sofrimentos. Sofre de brincadeira, brinca de sofrimento. Enigma que sorri e chora muitas vezes ao mesmo tempo. Era assim. A culpa era um efeito colateral da criança "adulterada" que fui.
Lá dentro era só uma tarde por semana, eu nem sei se todas as semanas.
Agrados. Agravos. Uma eternidade que cabia entre as 10 da manhã e as 2 da tarde.
Depois, era a hora de voltar. Depois, era choro e realidade. Dura e fria feito os ferrolhos que cindiam o mundo de dentro do de fora. Eu chorava silencioso e tinha as lagrimas acompanhadas pelas dela, secas por dois polegares como sempre tinha sido desde que me lembro por gente, e certamente antes até.
Sabia que não podia ficar. Que ela não podia ir comigo. Sabia que a coisa era como era. Era a mais pura e impotente tristeza sem demanda nenhuma. Não havia palavra ou pedido. Eu iria embora. Ela iria ficar. Derrotado, eu ia embora de mãos dadas com a solidariedade estranha, ela ficava. Era cedo demais pra isso e eu era obrigado a entender os imperativos categóricos que a vida as vezes impõe à gente.
A viagem de volta era outra.
Lenta, sem videogames nem mariolas nem janelas.
Era um langoroso imaginar.
Uma falta já sabida e ainda sem possibilidade de distração
mesmo pra criança que fui.
Eu voltava de lá meio idoso a cada ida.
Chegava em casa de noite.
Quinta-feira era dia de escola.
Vem daí?
Sei lá.
Phelipe Ribeiro Veiga
Rio de Janeiro, 26 de dezembro de 2022.
Hoje eu percebi um pelo branco no meu braço e lembrei de você. Pensei nos seus olhos infantis. Na sua gargalhada hipersônica. No seu sorriso...