quarta-feira, 19 de março de 2025

Sobre um pelo branco.

Hoje eu percebi um pelo branco no meu braço e lembrei de você. Pensei nos seus olhos infantis. Na sua gargalhada hipersônica. No seu sorriso amplo o suficiente pra que num tempo de 3 segundos o sol nascesse no leste de seus lábios, cruzasse todo o céu de sua boca e se pusesse a oeste dos mesmos lábios. Eu vejo o pelo branco do meu braço e penso nos 16 natais que você perdeu, nos pequenos e nos grandes eventos, em todos os fevereiros não celebrados mas sempre lembrados. Penso também, inevitavelmente na linda e frágil flor que você arrancou do meu peito violentamente com raiz e tudo, e que até hoje deixa terra revolvida. Nunca mais voltou a crescer tamanha inocência de flor. Parece que você levou um sei lá o que meu contigo sem chance de recuperação. Eu pensei nas rugas que você nunca terá, nas marcas de expressão, de choro ou riso, que seu rosto nunca irá me mostrar. Pensei na sua cara feito uma máscara estática que me olha de volta na esquina da rua Estado de Israel, semi distante, acenando uma última vez, outra e outra vez. Pensei em quanto abraço guardei nesses anos, em quanta novidade não pude compartilhar com você, quanto ombro pra chorar minhas dores você não pôde me dar, e em todas as piadas sem graça que você deixou de contar pra rir sozinho de cada uma delas como você fazia. Pensei nessa hipotética vida em que você nos poupava a todos de tão grande estupidez. Em realidades onde éramos amantes, noutras onde éramos grandes amigos, umas ainda onde seríamos distantes conhecidos, mas que em todas, de algum modo, eu ainda te saberia por aí, sendo, estando para além de em meu peito alvejado. Eu pensei em todas essas coisas enquanto caminhava de uma plataforma a outra, carregando minha garrafa de água numa mão, um coração trincado no peito e um pelo branco no braço direito.

Phelipe Ribeiro Veiga
Rio, 19 de março de 2025

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Sobre um nado livre.








O copo transbordou e virou. O recipiente para o qual eu escoava todo o meu amor, minha expectativa de futuro, de correspondência, de acolhimento virou. Jorrou por sobre a mesa e agora escorre pra todos os lados. Distribuo o meu momento áureo como quem acende uma luz negando-se a vestir qualquer foco limitador. Eu quero brilhar em todas as direções. Abri o armário e tirei as roupas que a alfaiataria do meu desejo passou anos tecendo sob medida e hoje eu oferto, com os reparos possíveis e ajustes necessários, a quem possa ficar bem nelas. É sobre mim! Eu emergi da condição de acompanhante e agora eu quero é a companhia. Quero que vejam a imensidão do meu coração. Que o apreciem, que o valorizem sem atrasos grandes. Quero ser. Fazer. Estar. Gozar. A mesa pinga sobre o chão e eu, sentado ali frente a cadeira deixada vazia, assisto tudo escorrer sob o som do elogio tardio de "você é tão bonito". É verdade que seguir a despeito desse eco é ainda nadar na contramão da correnteza. Represei tantos rios pra que pudesse correr caudaloso em mim que agora toda uma reestruturação se faz necessária, para que tudo corra para minha própria conveniência. Mas é também verdade que descobri em mim a perícia de um nadador olímpico. Minhas largas costas que afagavas enquanto dormia já não suportam o peso solitário de fazer o que éramos parar de pé, elas sustentam as braçadas borboleta de minha aventura contra o sol. Se me interpelam, eu digo que não quero abrir mão de nada. Sou impertinente, intransigente, empertigado. É de uma reparação de mim para comigo que se trata. Eu quero e logo eu me oferto o que eu necessito. A escassez me fez faminto. A rejeição me fez ávido. A frustração langorosa me tornou impaciente. Hoje eu sou e exijo a consideração como condição primeira. Nada menos. Eu peço desculpas aos que eu esbarro, lamento imensamente na minha estrutural docilidade de ser que tenha que abalroar embarcações alheias vez ou outra, queria que não precisasse ser assim, mas é essencial e urgente que eu navegue impetuoso. Isso porque é grave a chance de domesticação da minha natureza, e eu não quero isso nunca mais. Eu me devo isso. Quanto às roupas que não couberam em ninguém mais, as que levam marcas do seu uso, do tempo em que nos vestimos em par, compondo fantasias em tantos carnavais, das lembranças e dos momentos, as guardo, não vou mentir. Ainda não há tecnologia em mim que me ajude a adaptá-las todas, a doá-las a outros ou a me desfazer delas. Mas sigo a despeito delas. 
Há duas noite vi um filme que você me apresentou, e quanto sentido havia ali do que viríamos a enfrentar e que, no começo de tudo, passou desapercebido. Na noite passada também sonhei contigo, e me manteve desperto um conjunto de sensações e hipóteses de fatalidades. Frente a tudo eu me vejo sem alternativas. Resignado. Ficou assim estancado. O que fomos é uma ilha (fluvial) de impotência no meu fluxo atual de potência. E é nessa potência que eu vou me havendo com os espólios em um compromisso absoluto com meu nado livre. 
Desculpe. 
Há que ser. 
Há de estar. 
A vida é assim:
trágica e épica. 
E ambas as dimensões dela nadam a-braçadas. 
Eu vou junto. Me levo junto.
Há. 

Phelipe R Veiga
Rio, 31 de Janeiro de 2025


 "Lugia, Ho-Oh, cabrón, yo soy legendario" (BB)


Sobre um pelo branco.

Hoje eu percebi um pelo branco no meu braço e lembrei de você. Pensei nos seus olhos infantis. Na sua gargalhada hipersônica. No seu sorriso...