quinta-feira, 15 de maio de 2025

Aniversário.

Hoje eu passei em frente àquele café e vi aquela mesma mesa ocupada por dois homens. Um diante do outro. Conversa grave tivemos ali. Pensava se eles tinham noção do quanto eu já me rasguei em pedaços naquela mesma posição. Mas não. Nem me viram, nem noção, nem nada. Tampouco aquela cadeira se deu conta, ou os guardanapos da época — testemunhas não oculares da minha espoliação moral —, que certamente já se consumiram. A mesa, em si, pode ser, inclusive, que seja outra e esteja num canto outro do salão. Mas eu penso na gente ali, numa manhã ensolarada, comigo dizendo: "Fica! Vamos tentar!", enquanto suturava as gretas do peito, silenciosamente, diante de condições tão injustas com meu amor tão bonito.


Ver isso me fez pensar naquele aeroporto, naquela zona de embarque que, da última vez que passei por ela, havia sido alterada de modo que, fosse hoje, não poderíamos haver sustentado por tanto tempo o olhar. Eu me lembro de mim mesmo quase que em terceira pessoa, me arrastando pro raio-x com minhas malas excessivas e meu coração sempre pesando mais de 23 kg, estirado feito um chiclete já sem doce e pingando por todo o caminho que ficava entre eu e você — mais de cinquenta metros de distância. Eu gritava a dor que era uma despedida, coisa sempre inadmissível pra mim. Ficou aquela zona de embarque distante. Aqueles funcionários talvez nem sejam mais os mesmos. Eu, dizendo, ensandecido: "Salta essa catraca, vem comigo, seja lá pra onde for", diante de uma fé cega e umas duas ingenuidades tão condicionantes.


Lembrar dessa despedida me remeteu àquele condomínio popular que ergueram sobre o pátio onde eu, de mãos dadas e indo na contramão de pra onde apontava o meu pequeno coração — recém-saído da caixa naquela época —, torcia dolorosamente o pescoço pra olhar pra cima e te ver acenando da janela, separada de mim por imperativos categóricos em forma de barras de ferro. Eu, que me levantava triste sem nem saber reconhecer a tristeza, ia de encontro a um encontro com hora pra acabar, sabendo que me esperava, após o encontro, a despedida excruciante. Escrevia, naquela época, eu sei, cartas que fazem bem mais sentido hoje do que quando as escrevi. Me pergunto se ali eu já escrevia pra mim. Se deixava trilhas de pão pro homem que sou refazer o caminho e voltar naquele pátio a recuperar meu pedaço menino deixado ali, olhando pra trás — sequestrado por um abandono irremediável promovido por nada mais do que as circunstâncias mesmas de haver nascido. Irresgatável. Mas o pátio se foi. Ergueram-se casas no lugar onde hoje mora gente com vida e tudo, diante das quais eu passo vez ou outra. Eu já escrevia o que, em vocalização, já falhava; eu só sentia um sei-lá-o-quê diante da incondicional separação concreta de quem, por natureza, deveria estar sempre perto de mim.

E foi assim que os pátios foram demolidos, as zonas de embarque alteradas, as mesas do café reabitadas. A porta do cinema fica, a cena da despedida se vai. A zona portuária fica, o par de turistas se vai. As janelas mudam seus inquilinos. A árvore e sua sombra sobrevivem à nossa estadia. A entrada da emergência recebe novos doentes, que já nenhum deles é o meu. A minha vida vai assim se espalhando feito um objeto que se esmigalha e deixa farelos por um mundo que sobrevive a mim. Vou eu compondo um banquete invisível, porém farto, para que a senilidade um dia possa consumir. E eu vou me tornando tão mais às custas de sobrar de mim sempre um pouco menos. Cresço e me expando enquanto me diminuo e me contraio — ambos movimentos cósmicos, acessos diversos ao mesmo destino: o desaparecimento.

Envelhecer.
É aproximar o queixo da ponta dos dedos do pé.
É curvar-se diante da grave idade.
É conceder ao peso do próprio corpo — maleta essa na qual carrego mais do que cabe no mundo inteiro.

E assim sigo meu périplo cansativo até que desapareçam meus dedos e, com eles, todos os meus incontáveis adeuses, deixando pra trás apenas um par de anéis para quem os queira usar. Seus novos donos nem imaginarão quanto carinho testemunharam, não saberão da pele, dos urros de anelo por voltar a tocar — ou sequer da lojinha mequetrefe na qual comprei um deles por 26 reais em 2006, numa esquina de Icaraí que, esta sim, já fechou e, ao menos ela, não sobreviverá a mim.

Phelipe Ribeiro Veiga
15 de maio de 2025

quarta-feira, 19 de março de 2025

Sobre um pelo branco.

Hoje eu percebi um pelo branco no meu braço e lembrei de você. Pensei nos seus olhos infantis. Na sua gargalhada hipersônica. No seu sorriso amplo o suficiente pra que num tempo de 3 segundos o sol nascesse no leste de seus lábios, cruzasse todo o céu de sua boca e se pusesse a oeste dos mesmos lábios. Eu vejo o pelo branco do meu braço e penso nos 16 natais que você perdeu, nos pequenos e nos grandes eventos, em todos os fevereiros não celebrados mas sempre lembrados. Penso também, inevitavelmente na linda e frágil flor que você arrancou do meu peito violentamente com raiz e tudo, e que até hoje deixa terra revolvida. Nunca mais voltou a crescer tamanha inocência de flor. Parece que você levou um sei lá o que meu contigo sem chance de recuperação. Eu pensei nas rugas que você nunca terá, nas marcas de expressão, de choro ou riso, que seu rosto nunca irá me mostrar. Pensei na sua cara feito uma máscara estática que me olha de volta na esquina da rua Estado de Israel, semi distante, acenando uma última vez, outra e outra vez. Pensei em quanto abraço guardei nesses anos, em quanta novidade não pude compartilhar com você, quanto ombro pra chorar minhas dores você não pôde me dar, e em todas as piadas sem graça que você deixou de contar pra rir sozinho de cada uma delas como você fazia. Pensei nessa hipotética vida em que você nos poupava a todos de tão grande estupidez. Em realidades onde éramos amantes, noutras onde éramos grandes amigos, umas ainda onde seríamos distantes conhecidos, mas que em todas, de algum modo, eu ainda te saberia por aí, sendo, estando para além de em meu peito alvejado. Eu pensei em todas essas coisas enquanto caminhava de uma plataforma a outra, carregando minha garrafa de água numa mão, um coração trincado no peito e um pelo branco no braço direito.

Phelipe Ribeiro Veiga
Rio, 19 de março de 2025

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Sobre um nado livre.








O copo transbordou e virou. O recipiente para o qual eu escoava todo o meu amor, minha expectativa de futuro, de correspondência, de acolhimento virou. Jorrou por sobre a mesa e agora escorre pra todos os lados. Distribuo o meu momento áureo como quem acende uma luz negando-se a vestir qualquer foco limitador. Eu quero brilhar em todas as direções. Abri o armário e tirei as roupas que a alfaiataria do meu desejo passou anos tecendo sob medida e hoje eu oferto, com os reparos possíveis e ajustes necessários, a quem possa ficar bem nelas. É sobre mim! Eu emergi da condição de acompanhante e agora eu quero é a companhia. Quero que vejam a imensidão do meu coração. Que o apreciem, que o valorizem sem atrasos grandes. Quero ser. Fazer. Estar. Gozar. A mesa pinga sobre o chão e eu, sentado ali frente a cadeira deixada vazia, assisto tudo escorrer sob o som do elogio tardio de "você é tão bonito". É verdade que seguir a despeito desse eco é ainda nadar na contramão da correnteza. Represei tantos rios pra que pudesse correr caudaloso em mim que agora toda uma reestruturação se faz necessária, para que tudo corra para minha própria conveniência. Mas é também verdade que descobri em mim a perícia de um nadador olímpico. Minhas largas costas que afagavas enquanto dormia já não suportam o peso solitário de fazer o que éramos parar de pé, elas sustentam as braçadas borboleta de minha aventura contra o sol. Se me interpelam, eu digo que não quero abrir mão de nada. Sou impertinente, intransigente, empertigado. É de uma reparação de mim para comigo que se trata. Eu quero e logo eu me oferto o que eu necessito. A escassez me fez faminto. A rejeição me fez ávido. A frustração langorosa me tornou impaciente. Hoje eu sou e exijo a consideração como condição primeira. Nada menos. Eu peço desculpas aos que eu esbarro, lamento imensamente na minha estrutural docilidade de ser que tenha que abalroar embarcações alheias vez ou outra, queria que não precisasse ser assim, mas é essencial e urgente que eu navegue impetuoso. Isso porque é grave a chance de domesticação da minha natureza, e eu não quero isso nunca mais. Eu me devo isso. Quanto às roupas que não couberam em ninguém mais, as que levam marcas do seu uso, do tempo em que nos vestimos em par, compondo fantasias em tantos carnavais, das lembranças e dos momentos, as guardo, não vou mentir. Ainda não há tecnologia em mim que me ajude a adaptá-las todas, a doá-las a outros ou a me desfazer delas. Mas sigo a despeito delas. 
Há duas noite vi um filme que você me apresentou, e quanto sentido havia ali do que viríamos a enfrentar e que, no começo de tudo, passou desapercebido. Na noite passada também sonhei contigo, e me manteve desperto um conjunto de sensações e hipóteses de fatalidades. Frente a tudo eu me vejo sem alternativas. Resignado. Ficou assim estancado. O que fomos é uma ilha (fluvial) de impotência no meu fluxo atual de potência. E é nessa potência que eu vou me havendo com os espólios em um compromisso absoluto com meu nado livre. 
Desculpe. 
Há que ser. 
Há de estar. 
A vida é assim:
trágica e épica. 
E ambas as dimensões dela nadam a-braçadas. 
Eu vou junto. Me levo junto.
Há. 

Phelipe R Veiga
Rio, 31 de Janeiro de 2025


 "Lugia, Ho-Oh, cabrón, yo soy legendario" (BB)


Aniversário.

Hoje eu passei em frente àquele café e vi aquela mesma mesa ocupada por dois homens. Um diante do outro. Conversa grave tivemos ali. Pensava...