sexta-feira, 29 de junho de 2018

morreu!



morreu.
foram os dedos
e ficaram todos os anéis,
e as roupas a passar,
e a louça por lavar,
e o texto a revisar,
e a cama a arrumar.
e o corpo pra enterrar.

morreu,
e morto já nem se veste
pra receber tanta gente
que de longe vem lhe ver.
a ocasião mais especial
desde seu nascimento
e já não é capaz de nada.
passou a formatura,
o casamento,
a condecoração,
e pra tudo se aprontou tanto,
se emperequetou,
ensaiou palavra.

morreu
e agora só lhe resta
os outros a dizerem por ele,
os outros a lhe escolherem a roupa,
a frase que lhe resumirá a vida que teve,
a expressarem se valeu ou não,
se se arrependeu ou não,
resta aos que mais o amaram
se desculparem pelos seus desajeitos,
confessarem seus amores inconfessos,
"te amava muito, sabia?", diz a vizinha.
vai agora pro lugar onde passará mais tempo,
a casa definitiva de seu corpo,
mas morreu,
hão de escolher outros
a vizinhança,
a paisagem,
terão de carregá-lo.
já não vem, nem vai.
foi.

morreu,
mas ficou
a dar trabalho
aos por enquanto vivos.

perdeu tudo num ultimo suspiro,
lá se foram todos os dias num só,
e precisa agora contar com a lágrima alheia
porque seus olhos já não veem nem choram,
ainda que insistentemente abertos.
morreu,
carece que lamentem por ele
a Grande Perda.

morreu incrédulo,
mas lhe chamaram um padre
a dizer palavras
para as quais não diria
jamais amém.

morreu,
e já se faz dele
a vontade dos vivos.

morreu,
puseram-lhe as mãos unidas
sobre o peito silencioso.
puseram-lhe a camisa amarela que nunca usava,
a jaqueta que lhe engordava,
o cabelo pro lado direito
mesmo tendo usado a vida inteira
pro lado oposto,
mas acertaram no sapato,
porque não se pode errar em tudo.
enterraram-lhe ao lado da tia que detestava,
e foram dizendo-lhe anedotas aumentadas,
detalhes faltando,
interpretações enlutadas de quem ficou
a ruminar sua própria vez de morrer.
e foram planejando secretamente
as férias com os espólios que deixou.


vai o morto, ficam os dedos.
vão se os dedos, ficam os anéis.

Phelipe R. Veiga
29 de junho de 2018, 12h08


"Para isso fomos feitos: 
Para lembrar e ser lembrados 
Para chorar e fazer chorar 
Para enterrar os nossos mortos" (Poema de Natal, Vinicius de Moraes) 


Sobre um cofre no peito.

É de uma longa caminhada que venho, e foi nesse processo de muitos anos que fui aprendendo a sanear meus comprometimentos. Não por mero rigo...