Coisa estranha é o corpo. Uma monstruosidade a demandar cuidados e exigir afagos e a lançar enigmas em forma de sensações. Queria, às vezes, um especialista que me soubesse nomear as dores, receitar os unguentos certos e apontar as posições e posturas devidas. Instruções seguidas de um "vai passar" referente a tudo que me é queixa do corpo, essa etiqueta atada à alma que me atribui o caixão certo onde um dia hão de guardar o que sobrará de tudo que fiz e fui. O corpo será vestígio, vitimado, provavelmente, dos inúmeros mal entendidos insistentes entre eu e ele. Até lá nos engalfinhamos entre não saberes.
Talvez isso constitua o amante. Não é sempre que alguém para o que faz e nos olha. Nos investiga cada dobra de pele, quer ouvir sobre cada cicatriz ou de onde surge cada dor. As unhas de dedão perdidas na infância, as marcas de queimadura, as mordidas de cachorro, as peripécias todas, às vezes até os antigos amores. Não é todo dia que temos diante de nós quem se retenha acordado para notar-nos o ritmo da respiração quando já adormecemos, o movimento dos olhos fechados e os espasmos do corpo enquanto sonhamos. O amante é sempre um investigador diligente, um cientista encarcerado numa observação minuciosa de nós. Mais precisamente, do nosso corpo. Essa manifestação confusa do que somos da pele pra dentro - se é que é ali mesmo que somos.
Talvez isso justifique a paixão. Essa expectativa de que alguém nos ajude a desvendar essa massa de carne misteriosa que vive a nos contar os dias em reumatismos. Essa esperança de que nos desvendem, de que nos digam do que precisamos, a medida do que nos falta, a cura pro que somos. Há uma fé morna que do romance surja um especialista de nós. Que ele se constitua e nos salve de tanto assombro e não saber. Talvez por isso nos magoe tanto os esquecimentos de aniversário e as desatenções mínimas, produzindo os ressentidos "mas eu já disse que não como isso”, e nos inebrie tanto a atenção aos detalhes, produzindo orgulhosos "você se lembrou!". Mesmo sendo tudo em vão.
Talvez isso justifique o amor. O resto. O estar faltando pros dois. O não haver sabido, correspondido. Um contracenar ignorante, desistente. O estarmos sós, acompanhados. O não haver saída tornado casa. O sermos ambos inacabados. Apenas corpos lado a lado a tatear o escuro breu que somos.
E disso, talvez, o desamor. Um desvencilhar-se do lugar de objeto (de desejo?) do outro. Um não (querer) saber mais. Um talvez nunca serei, um quem sabe nunca ter sido, um pavor do nunca será. Um estar só no corpo de novo.
Penso.
Me calo.
Sinto.
Vivo.
Respiro.
Repito sussurrado
Me calo.
Sinto.
Vivo.
Respiro.
Repito sussurrado
o que me garante o corpo:
"vai passar!"
"vai passar!"
Phelipe Ribeiro Veiga
Vila Velha, 19 de abril de 2021- 22h32
“As almas sempre separadas,
Os corpos são o sonho de uma ponte
Sobre um abismo que nem margens tem” (Fernando Pessoa)
“Quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória mudando como um deus o curso da história por causa da mulher” (Gilberto Gil)
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