sábado, 23 de abril de 2022

Sobre minha criança encolhida num canto.




Num canto sombrio de minha mente, encolhida, eu noto uma criança.

Eu enxergo ela. Eu a vejo. 
Nos olhamos. 

Conversamos em silêncio. 
Por alguma razão não falamos a mesma lingua.
Sua voz inaudível é eco. Vem de longe e ao mesmo tempo de tão perto que eu a escuto dentro de mim. Atemporal.
Nos encaramos, fazemos sabido absolutamente tudo sem dizer nada.

Eu admito. Confesso.

Eu a tenho evitado feito algo que quanto mais ignoro, mais eu sei que está ali.
Ouço seu choro. Sei suas razões. Sei da sua dor porque ela é a minha dor.
Estamos sós, eu e ela. Juntos. Sozinhos.
Não sei explicar de onde ela saiu, se sempre esteve ali. 
Por onde andou todo esse tempo? Atrás de que (i)móvel se escondia? 
Não sei porque agora. Porque nessas condições. Por que tão inconvenientemente? 

Vejo o que leva nas pequenas, frágeis e machucadas mãos.
Há pequenos cortes que não sei de onde vieram, mas sei.
Parece que os anos passaram e ela foi juntando os cacos afiados de tudo que se recusava a envelhecer comigo. Feito ela mesma. É um trabalho grosseiro e infantil. Uma obra à nossa imagem e à minha dessemelhança, feita de tudo que tentei deixar de fora.

Eu pauso.

É tempo? Há escolha? Há saída?

Eu a chamo pra perto. Prometo cuidados. Me interesso pelo mosaico que ela leva nas mãos. Quero abraça-la porque ninguém mais pode. Quero seu abraço porque nada mais funciona. 
Estamos sós, eu e ela. Sozinhos. Juntos. 

Haveremos? 

Phelipe Ribeiro Veiga
Irvine, 23 de Abril de 2022, 12h18.

"Hoje eu quero apenas uma pausa de mil compassos para ver as meninas e nada mais nos braços."- Paulinho da Viola.

"O que eu sou hoje é terem vendido a casa. É terem morrido todos, É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio." - Fernando Pessoa. 




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