segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Sobre um corolário de sombras.





Pouco a pouco as coisas vão ganhando titularidades e a casa onde moro vai sendo habitada por um mobiliário estranho. Nem os quadros estão mais nos mesmos lugares, apesar de não terem se movido um centímetro. Talvez porque o que mudou foram as paredes. Faz parte desse meu cotidiano trânsito entre dois mundos. Um pé no passado e outro no presente, sob um abismo obscuro dividindo os dois a que apelidei de futuro. 

Vejo uma sombra passando da cozinha pro quarto, voltando do banheiro pra sala. Vivo eu e ela, a sombra. A sombra cobre a metade do quarto, da sala, do sofá e do meu pensamento. Dotada de toda uma autonomia, caminha daqui para acolá e faz suas coisas, e cantarola num eco distante. Ponho música alta pra ensurdecer-me e finjo não notar o fantasmagórico mover de coisas na cozinha quando já não há ninguém. Às vezes me deixa copos pra eu lavar. Eu lavo. Ela também me deixa contas pra eu pagar. Eu pago. É tributário o meu convívio com ela. 

Hoje o acordar é um gradual desvanecer do mundo ao meu redor, é assistí-lo (a) perder resoluções. E pouco a pouco a sombra dá as mãos a uma ciranda de outras sombras, compondo o pesado corolário que levo sobre a cabeça. É minha coleção de despedidas. Prêmios de minha incompetência em fazer o tempo parar. Em fazer durar chuvas de verão ou encerrar estios antes que me sequem as lavouras todas. É a repercussão desse meu timing desencontrado de todos os demais ou quem sabe é só pura má sorte ou azar, ou os dois, caso não sejam a mesma coisa. 

Ouço as portas se fecharem, todas. O virar de chave, várias. As costas caminhando em direção às escadas ou aos elevadores ou portas. Fico eu, sempre igual e na mesma situação, mão nas chaves, testa colada à madeira das portas, olhos fechados, só e assombrado pela sobra última que levo presa à planta dos pés e que me aponta o dedo acusatoriamente. Se ao menos dentre tanta sombra uma me servisse para sentar-me embaixo dela e ler um livro. Mas nem isso. Apenas me pesam a cabeça e o peito. Apenas. 

Não há.

Phelipe Ribeiro Veiga
Rio, 18 de setembro de 2023. 11h52


"Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de seccionar aqueles dois mundos que eram ele e ela. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se muito longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce." (Vinicius de Moraes) 

"It's strange what desire will make foolish people do" - Chris Isaak

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(...)

Eu vi uma casa se despir. Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por ...