domingo, 21 de abril de 2013

Sobre o aniversário de uma cidade.




Uma lágrima caiu no cerrado. Nasceu uma cidade. 

Demos-lhe asas. Foi um ato e tanto, feito um Prometeu desesperado roubando o fogo dos deuses, nós roubávamos do ermo uma capital. O planalto recebia a Alvorada de esperanças antigas por um futuro melhor. 
Cada tijolo erguido por mãos de todos os sotaques. Acompanhamos, nação, os primeiros passos da Esperança ao som de bossa subindo rampas, fazendo curvas sem sinais vermelhos. Jazia ela feito um monólito no planalto central, um monumento.
A esperança mal balbuciava, quando de assalto fora tomada de nós, cortaram sua língua, ataram-lhe pés e mãos. Por tanto tempo sofreu os açoites de generais, arrancaram seus olhos, e fora dito a ela que confiasse neles. Juravam ser aquilo para sua proteção. Conservaram-lhe os ouvidos para preservação da dó, da dor e do horror. 
Depois houve uma troca de turno, mudaram os algozes de nossa Esperança. Mutilada, sobre suas asas pesam tantos ministérios e tão poucos mistérios, vôos não são possíveis. É que todo mundo sabe, sabe mesmo, nada é segredo. A Esperança acorrentada é moralizada pelos imorais. São os mesmos os que rasgam suas roupas e os que acusam sua nudez. Estupraram-na e negam seus filhos, para que não se prolifere a aberração da Esperança. Pobre Esperança, cuspida, cega, violada, emudecida, aleijada e acorrentada, seus fiéis viraram clérigos, crer nela virou uma fé para a qual se (p)reservam só os ignorantes e otimistas. 
Nós construímos a cidade acreditando que derramávamos suor e jorrávamos esforços no ermo lançando os fundamentos da mudança. Coisa perigosa é a mudança. Perigosa e fantástica. A Esperança, dizem, é a última que morre, mas quem saberá o quanto sofre?! 
Deveria haver menos dissabor a jovens como eu?! 
Talvez devêssemos começar tudo de novo. Dá-nos ó mãe gentil um novo cerrado, um novo Anchieta e uma nova cruz de madeira, e uma nova terra Brasil. A que existe, resiste, mas já não há salvação.  
Eis que o filho teu já foge à luta, e já não ergues da justiça a clava forte. Que será de nós?


Phelipe Ribeiro Veiga
21 de abril de 2013 - 15:59



"No princípio era o ermo 
Eram antigas solidões sem mágoa. 
O altiplano, o infinito descampado 
No princípio era o agreste: 
O céu azul, a terra vermelho-pungente 
E o verde triste do cerrado. " Vincícius de Moraes

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Sobre um vale.



Sub-traio-me. Vou me mutilando passo após passo por esse vale de sombra onde cada poste de luz é um adversário, onde embaixo de um gramado escondem-se perigos sem fim. Jorra de meus olhos o sumo escuro de meus pensamentos. Sub-traio-me. Escalo a Vida numa escalada sem fim, onde a cada cume construo uma nova montanha eu mesmo, de modo que ergo-me diante de mim mesmo como um monólito em homenagem à toda possibilidade de fracasso que eu institui em modo de armadilha. Afogo-me pelos olhos, sinto o peso imenso de mim mesmo rompendo minha pele, rasgando meus músculos, partindo meus tendões e me sobrepujando em dor e lástima e sangue. Não importa de onde venha a lâmina, o corte vem de dentro. Sub-traio-me. Não me alcanço, não me acho, não me toco, me corroo. O que sobra sob as mãos de tão brutal algoz? Vou me arrastando vale acima, diante de jóias feitas em imaginação, mediante a riqueza que se ergue abrupta como obstáculo a minha própria realização, e daí realizo, sub-traio-me. E de subtração em subtração torno-me um ordinário impossível. Um número acompanhado de um sinal. Não sou, sou menos eu. Sub-traio-me. Encontro diante de meus olhos todas as possibilidades do mundo, e atrás delas sorri a escandalosa possibilidade de fracasso. Todos nesse vale opressivo podem ter tudo, e a mim só falta o que há de mais fácil. Mas o que há de falta que seja pouca? Se o que falta sempre falta demais, muito, rouba paz? Queria derrubar o vale inteiro sobre meus ombros, substituir todo esse peso de ser quem sou  por algo mais leve. Sub-traio-me. Até quando? Não há.

Phelipe Ribeiro Veiga.
17 de Abril de 2013 - 19:00

"Vivo nas águas turvas da minha imaginação." - Vinícius de Moraes

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Sobre um desmoronamento.

É que começou a desmoronar pela mínima unha, e foi lascando, rachando, partindo, esfoliando, e foi-se um dedo inteiro que partiu-se sobre os dedos vizinhos desmoronando, e enfraqueceu a ponta dos pés, e subiu a perna, destroçou a panturrilha, e tudo foi se precipitando sobre tudo, e o peso foi cuidando de cada fragmento que se debruçava sobre cada fragmento, e já não se sabia se o intento de tudo era se segurar ou se precipitar. E foi-se coxa, verilha, sexo, abdômen, vísceras ocas, peito, braços, mãos, unhas, pescoço, garganta, a voz, o vazio da língua e seus sabores simulados, os olhos esculpidos abertos e um último fio de cabelo, de modo que nem sua sombra se manteve de pé, e nem a lembrança dos que um dia o contemplaram imponente sobreviveu a tão impressionante desmoronamento.

Os destroços jaziam no chão, esmiuçados, moídos.

De certo modo, aprumados, os restos do que tinha sido cada fragmento amontoados numa antiga forma era agora um novo amontoado.

Sobre aqueles escombros cresceu uma árvore, deu-se um encontro, fez-se uma criança, mudou-se o mundo.

Porque tudo que acaba encontra um jeito novo de ser de novo.

Phelipe R. Veiga
11 de abril de 2013-18:20

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Sobre ser um poeta brasileiro.



Sou um poeta brasileiro. 
E feito a brasa que minha nação carrega no nome eu também sou não. 

Esse meio termo. Essa promessa não realizada de fogueira, ou esse ter sido, quase. Essa sensação de impotência mediante o incendiar-se. Essa promessa. Esse fra-escasso. Não, eu não sou lenha nem fogueira. Sou brasa. Sou quase o que sou. 

Sou como minha terra. Uma quase alegria, completa. Um carnaval que evita a quarta-feira. Um feriado prolongado. Uma praia lotada depois de um funeral. Uma comemoração forçosa pela alegria como única opção diante de tanta tristeza. 

A brasa que não incendeia, mas queima ao soprar do vento, e ameaça e ameaça mas não incendeia, não incendeia nunca. Assim sou eu, e minhas ameaças de alçar vôos, e minhas odisséias, e meus heroísmos. Vou sendo um quase brilhante alguma coisa. 

Feito minha terra, que tem os risonhos e lindos campos com mais flores, que jazem muradas, que não podem ser colhidas por qualquer um, e meus braços não alcançam. Meu Deus, meus braços não alcançam! Feitos os bosques com mais amores, que tão poucos são correspondidos. Feito a mãe gentil que renega os filhos e põe uns a carregarem o jugo da felicidade dos outros. A mãe gentil que tem suas predileções, que faz pesar a clava forte, e não, o filho teu não foge à luta. 

Sou parte disso. Sou um poeta brasileiro. Feito a minha terra, sou brasa, vermelho opaco, árvore espinhosa a sangrar, vermelho, brasil. Sou um poeta brasileiro, e só me resta rir e mar...

Phelipe Ribeiro Veiga
04 de Abril de 2013 - 22:14

"Eles venceram e o sinal está fechado pra nós..." - Belchior

(...)

Eu vi uma casa se despir. Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por ...