terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Eu te dei um jogo tão fácil pra você jogar. Começou comigo te mostrando meu jogo todo, depois comecei a te emprestar minhas peças, até que me vi basicamente roubando a seu favor pra você me ganhar. Comecei lendo só as regras que te beneficiavam, bem fácil. Depois acabei inventando novas regras pra te ver vencer e fui ignorando mesmo elas, até que eu me vi jogando por você. E pouco a pouco notava que seus olhos sequer estavam no jogo. Via, distraidamente, coisa qualquer. Notava o formato das nuvens, o vento nas folhas, os aviões que passavam e comentava comigo as notícias do dia enquanto eu me cansava sustentando o meu e o seu jogo. Eu te dei um jogo tão fácil porque eu queria que você (me ganhasse) e eu te daria a mim mesmo por prêmio. Mas você achou tudo muito complicado, tudo muito difícil, a cadeira dura, o objetivo do jogo cansativo. Você achou tudo tão chato! E eu? Bem, começou comigo jogando contigo. Até que me vi: minha cadeira vazia, meu jogo parado, e eu sentado no seu lugar tentando te fazer ganhar. Você? Levantou. Foi esticar as pernas. Ver a paisagem. 

Ver a paisagem... 


Phelipe R Veiga
Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 2021, 19h15

"é mistério mesmo ou só tirania?" (Luedji Luna)


quinta-feira, 14 de janeiro de 2021



Corpo.

De/manda. 

Ando. Tem fome. Como. Tem sede. Bebo. Quer se sentar. Sento. Dói. Levanto. Quer deitar. Deito. Quer coçar. Coço. Pinica. Estica. Amolece. Quer respirar fundo. Quer fechar o olho. Quer coçar o olho. Quer o que não sabe e eu que me vire pra encontrar. Ando. Quer prazer. Gozo. Quer chorar. Quer fungar. Descansar. Quer dormir. Durmo. Perco o sono porque quer pensar. Penso. Quer correr. Não tem pra onde. 

O corpo cavalga a alma até se precipitar. 

Não há.

Phelipe R Veiga. 

Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 2021, 14h53. 

"ouço a mulher de pele ardida 
dizer à boca do telemóvel
mas depois do enterro fico livre
e penso:
também eu conto com isso" 
(João Miguel Henriques)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

“TANTO...”

Há palavras que valem um vocabulário inteiro.

Elas são como caixas, um contêiner, uma comporta, uma ante-sala de um infinito de possibilidades semânticas.

Há palavras que parecem trazer consigo um eco siamês. Fosse ela um corpo, esse eco seria o osso, estrutura, como se sem toda sua infinita continuidade de dentro pra dentro, ela sequer pudesse sobreviver ou parar de pé.

Há essas palavras. Algumas verbo, outras ad/vérbios. Algumas terminadas com A, outras não. Todas, porém, acompanhadas de compulsórias reticências. 


São essas as palavras mais verdadeiras. Contam o grande segredo silencioso que se esconde por detrás de todo ruidoso falatório humano:


A palavra não diz nada! E é essa a sua gravíssima função. A de nos lembrar que palavra alguma diz qualquer coisa. Estamos sozinhos num vazio enorme que preenche tudo.


Há palavras. O que não há é sentido. 

E há palavras que denunciam isso. 


Feito a caixa de Pandora, ao abri-las com a língua afiada e desesperada, há um vazio interrompido unicamente por uma morna esperança de um dia poder dizer com ela alguma coisa. E quem sabe ser até entendido? 


Quem sabe?!


Não há!



Rio de Janeiro, 04 de janeiro de 2021. 20h22


“Quando pronuncio a palavra Silêncio,

destruo-o. Quando pronuncio a palavra Nada,

crio algo que não cabe em nenhum não-ser.” (Wislawa Szymborska)


(...)

Eu vi uma casa se despir. Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por ...