quarta-feira, 20 de outubro de 2021

A sumir.



Assumir.
A escolha e a consequência.
A solidão e o sexo
O gosto e o cheiro
O ensejo e o desejo 
O despejar-se e o morar-se em si.
Assumir: do verbo ser em retrospecto 
conjugado no tempo de se poder ser apenas o que já se foi
sempre numa pessoa qualquer do singular.
A sumir.
Quanto mais eu sei quem eu sou, mais eu deixo de existir.

Irvine, 20 de outubro de 2021, 21h27
Phelipe R Veiga

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Sobre as tardes com Dona Tharcilla.




Fugido. Corrido. Cínico. Fingia que o ruído das ruas nem era comigo. 
Era só o sol no chão de taco e, sobre o taco, meus brinquedos espalhados. 

Você se arrumava e se perfumava pra ficar em casa. Ali, comigo. Daí ficava sentada ao pé da cama, de batom, perfume, vestido, cabelo tingido e penteado, sandália escolhida descalça ao lado, cutucando o canto da unha da mão e ouvindo o ruído da TV. Ficávamos ali compartilhando nossos mundos isolados. Silenciosos apenas sob os ruídos dos nosso pensamentos: os meus, infantis, caminhando em direção às amarguras adultas, e os seus, adultos, caminhando pra um resto infantil no qual residiriam seus últimos anos. Assim passamos tantas tardes dizendo-nos nada. Talvez porque não precisássemos. 

Seria isso um instante de feliz idade? 
Saudade!
 
Vila Velha, 29 de abril de 2021, 11h47

"Foi sempre um perigo pensar na felicidade." (Valter Hugo Mãe, Contra Mim) 


terça-feira, 20 de abril de 2021

Sobre o corpo, de novo.




Coisa estranha é o corpo. Uma monstruosidade a demandar cuidados e exigir afagos e a lançar enigmas em forma de sensações. Queria, às vezes, um especialista que me soubesse nomear as dores, receitar os unguentos certos e apontar as posições e posturas devidas. Instruções seguidas de um "vai passar" referente a tudo que me é queixa do corpo, essa etiqueta atada à alma que me atribui o caixão certo onde um dia hão de guardar o que sobrará de tudo que fiz e fui. O corpo será vestígio, vitimado, provavelmente, dos inúmeros mal entendidos insistentes entre eu e ele. Até lá nos engalfinhamos entre não saberes. 

Talvez isso constitua o amante. Não é sempre que alguém para o que faz e nos olha. Nos investiga cada dobra de pele, quer ouvir sobre cada cicatriz ou de onde surge cada dor. As unhas de dedão perdidas na infância, as marcas de queimadura, as mordidas de cachorro, as peripécias todas, às vezes até os antigos amores. Não é todo dia que temos diante de nós quem se retenha acordado para notar-nos o ritmo da respiração quando já adormecemos, o movimento dos olhos fechados e os espasmos do corpo enquanto sonhamos. O amante é sempre um investigador diligente, um cientista encarcerado numa observação minuciosa de nós. Mais precisamente, do nosso corpo. Essa manifestação confusa do que somos da pele pra dentro - se é que é ali mesmo que somos.

Talvez isso justifique a paixão. Essa expectativa de que alguém nos ajude a desvendar essa massa de carne misteriosa que vive a nos contar os dias em reumatismos. Essa esperança de que nos desvendem, de que nos digam do que precisamos, a medida do que nos falta, a cura pro que somos. Há uma fé morna que do romance surja um especialista de nós. Que ele se constitua e nos salve de tanto assombro e não saber. Talvez por isso nos magoe tanto os esquecimentos de aniversário e as desatenções mínimas, produzindo os ressentidos "mas eu já disse que não como isso”, e nos inebrie tanto a atenção aos detalhes, produzindo orgulhosos  "você se lembrou!". Mesmo sendo tudo em vão. 

Talvez isso justifique o amor. O resto. O estar faltando pros dois. O não haver sabido, correspondido. Um contracenar ignorante, desistente. O estarmos sós, acompanhados. O não haver saída tornado casa. O sermos ambos inacabados. Apenas corpos lado a lado a tatear o escuro breu que somos.

E disso, talvez, o desamor. Um desvencilhar-se do lugar de objeto (de desejo?) do outro. Um não (querer) saber mais. Um talvez nunca serei, um quem sabe nunca ter sido, um pavor do nunca será. Um estar só no corpo de novo. 

Penso.
Me calo. 
Sinto. 
Vivo. 
Respiro. 
Repito sussurrado 
o que me garante o corpo: 
"vai passar!"

Phelipe Ribeiro Veiga
Vila Velha, 19 de abril de 2021- 22h32

“As almas sempre separadas,
Os corpos são o sonho de uma ponte
Sobre um abismo que nem margens tem” (Fernando Pessoa) 

“Quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória mudando como um deus o curso da história por causa da mulher” (Gilberto Gil)




segunda-feira, 29 de março de 2021

Sobre a árvore que nasceu ao contrário.




Uma árvore nasceu pela última folha.

Um risco no ar a alguns metros de altura do chão. Uma linha verde no céu azul.
Abriu-se no ar feito flor. De sua ponta inferior nasceu fino e a se engrossar o primeiro galho. Assim a árvore vem se desenhando folha após folha, galho após galho de cima pra baixo. Descendente, chacoalha o vento seus ramos recém desabrochados enquanto corre em direção ao solo sonhando em construir raízes a partir das quais se possa nutrir e, por meio delas, se agarrar ao chão e se salvar de ser levada por uma brisa qualquer. Enquanto cresce, vaga ao sabor da brisa. Árvore à deriva.
Colhe luz do sol mas seu processo de alimentação está inacabado. É inundada de energia mas não sabe bem o que fazer com ela. Se dissipa. Puxa do nada água e não vem. Não há raiz. Os ramos se esticam de fora pra dentro. É, ao menos por enquanto, uma árvore estranha e solitária sob a qual ninguém se senta e na qual nenhum pássaro faz casa. 
Decresce enquanto cresce e por vezes perde folhas e murcha aqui e acolá antes mesmo de encontrar o resto paleontológico do que será um dia sua semente. Cresce como se a própria gravidade trabalhasse em parceria para realizar seu sonho de enraizar-se, sua ânsia por encontrar o lugar de onde deveria ter começado mas que para ela será seu destino final.  

O que lhe resta é suportar a dor de ter começado pelo fim, de se fazer de fora pra dentro, de se passar toda uma vida flutuando por aí e suportando o peso dos ramos sem raiz que a nutra ou a sustente.
Mas resta também o alívio por ter se começado verde folha e não lenha queimada. 
Haverá! 

Phelipe Ribeiro Veiga
29 de março de 2021


quarta-feira, 17 de março de 2021

Sobre as tolices.




E se eu tivesse faltado o trabalho naquele dia? Me demorado mais na cama, teria evitado aquela discussão? Aquele virar a esquina para nunca mais? Desapareceria essa gigantesca cicatriz que carrego no peito?

E se eu tivesse respondido, cortante, que sim? Se eu tivesse aberto as porteiras do peito e deixado correr livre a minha vontade de brigar pelo que queria sem medo? Pra onde eu teria me levado a partir dali? Quão diferente teria sido? Eu perderia o voo? Perderia todos os voos? 

E se eu tivesse sido sincero desde o primeiro instante? Se eu tivesse contato a verdade sobre a primeira mentira, teria evitado todas as outras? Teria eu vivido uma vida onde eu julgasse merecer mais a felicidade e menos a desfortuna? 

Mas e se eu tivesse conseguido me desatar no primeiro momento de descontentamento das esperanças nunca realizadas que me roubaram tanto tempo? Se eu tivesse desacreditado mais cedo de qualquer milagre? Teria eu virado ateu desses manipansos ocos a tempo? O que teria visto do mundo? O que teria deixado de ver?  

Os eventos estão sempre por um fio e é sobre ele que eu me equilibro. E me desequilibra o peso dos tolos arrependimentos de não ter sido capaz de ser quem nunca fui capaz de ser. Tolice é acreditar que arrepender-se muda uma coisa qualquer. Mais um desses mitos bíblicos que nos complicam a vida, nos amarram os cadarços e nos imobilizam. Tropeço nos meus próprios pés marcados por chagas cristãs, ainda hoje. O rio nunca para de correr mas está  sempre no mesmo lugar. 

Phelipe Ribeiro Veiga        
17 de março de 2021 - 21h50

"A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios." (Fernando Pessoa) 



sábado, 27 de fevereiro de 2021

Sobre o fim da picada.



Há ruas que esperam meus passos em diversos cantos do mundo. Há esquinas onde ainda pisarão meus sonhos e cafés onde eu irei reconstruí-los. Há uma muda de árvore num canto desconhecido de mundo debaixo da qual ainda descansarei em sua sombra. Pássaros ainda não nascidos irão compor canções pros meus momentos. Há, por aí, grandes amigos ainda desconhecidos e antipatias a serem colecionadas que hoje são tão indiferentes a mim quanto a vida das amorosa das abelhas. Tem abraços que receberão meus momentos difíceis que ainda nem conhecem meu nome. A vida, ainda que sendo curta, sabe ser grandiosa. 

É pensando nos trajetos inesperados que já fiz e nos que ainda farei que eu tento aliviar a minha patente carga dramática de saltar do Gênesis ao Apocalipse a cada fato que me acontece. 
Eu sigo aqui e nada é o fim da picada.

Phelipe Ribeiro Veiga
27 de fevereiro de 2021, 14h15

"Bom é não saber o quanto a vida dura ou se estarei aqui na primavera futura
Posso brincar de eternidade agora sem culpa nenhuma" (Zélia Duncan/ Mart'nália)

"Mesmo no que se repete permanece a novidade: 
A vida, em sua plenitude sexual, ainda conserva a virgindade." (Marla de Queiroz)




terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Diante de duas portas...




_Por ali...?
_Dor!

  (...)

_E por ali...? 
_Dor também! 
_Onde é que eu encontro prazer, então?! 
_ No "Entre!". 

23 de fevereiro de 2021 - 17h28
Phelipe Ribeiro Veiga

"E o que me separa de você agora? 
Um avião, um oceano, outros planos
 e muitos enganos!" - ( Zelia Duncan / Christiaan Oyens)  

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Sobre repartir.






Quem parte, reparte 
a alma em pedaços e os divide. 
É o que fica que conta a história, 
suas versões e suas aversões. 
É quem fica que narra. 
Quem vai terá ido. 
Vira sombra. 
Pantomima. 

Partir é virar anedota casuística pro desejo do outro. 
É ser tema nunca frequente. É tornar-se quebra-molas de conversações numa mesa de bar. Partir é estar presente, várias vezes, em pequenos silêncios. Em cantos vazios da cidade. Esquinas. Plataformas de metrô. Até mesmo canções. É estar pra sempre sentado numa mesma cadeira de um quarto, com uma voz sempre igual, com a mesma risada, eternamente. É habitar um espelho não estando mais ali. É viver repetidamente a mesma cena, mesmo nunca mais voltando de fato à ela. É ser visto sem que te possam enxergar. É ser brinquedo pra memória do outro. Partir é habitar invisível, por vezes, sutis sorrisos acompanhados de choro, às vezes choro desacompanhado de tudo. É habitar até o esquecimento. É ser agulha, acupuntura da saudade. 

Partir é repartir-se e compartir-se ao mesmo tempo. 
 
É fazer-se em pedaços. 
É dividir-se nessas partes nunca iguais 
nem sequer a elas mesmas. 

Partir é ficar espalhado por aí,
mesmo indo embora pra sempre 
ou sempre indo embora.

15 de fevereiro de 2021, 13h27
Phelipe Ribeiro Veiga

"(...) tomou o pão, e, abençoando-o, o partiu, e o deu aos discípulos, 
e disse: Tomai, comei, isto é o meu corpo." - (Evangelho segundo Mateus, cap 26, v26)

"Nem tudo que acaba aqui deixa de ser infinito" - (Zelia Duncan / Edu Tedeschi)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Sobre o compromisso a que faltaremos todos




Temos todos um compromisso a ser faltado. 

Pode ser que seja um aniversário, um bar, uma consulta médica, uma reunião de trabalho ou mesmo uma ida à padaria interrompida. Todos nós um dia não chegaremos ao destino planejado. Pode ser que haja alguém à espera. Pode ser que haja alguém a ser avisado: "não chegará mais". Teremos ficado pelo caminho, alguns antes mesmo de sair de casa, outros sem a chance de voltar pra casa. Não sabemos dizer quando, se será uma terça, uma quarta, um fim de semana de sol. E os eventos ocorrerão sem nós. Alguns, de menor proporção, sofrerão a dolorosa interrupção advinda do nosso não chegar mais, outros seguirão como se nada. Nos dias que se seguem E-mails importantes seguirão chegando, boletos, entregas esperadas, e tudo isso já sem ter quem os leia ou receba. Nosso não comparecimento, pode ser, produzirá um ou dois eventos aos quais também não estaremos senão como justificativa. Festivais de anedotas alcoólicas são de costume. E então, outros novos eventos já não contarão mais com a gente. Tudo sem nós. O cardápio de desvios do nosso roteiro é imenso: podemos cair no banho, sucumbir a uma dor antiga, sermos atingidos por um carro desavisado, ou mesmo pifar feito uma TV que um dia liga e no outro não mais. Poderá ser um suspiro íntimo, ascético e silencioso, ou um espalhafatoso ato público com testemunhas e nota no jornal. Fato é que não chegaremos mais. De modo pontual, definitivo e irremediável, atenderemos ao compromisso último e antigo, agendado como cláusula pétrea desde a nossa chegada. Faltaremos todos para atender a esse compromisso.

Há! 

Phelipe Ribeiro Veiga
01 de fevereiro de 2021, 13h51

Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada. (Vinícius de Moraes)

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Eu te dei um jogo tão fácil pra você jogar. Começou comigo te mostrando meu jogo todo, depois comecei a te emprestar minhas peças, até que me vi basicamente roubando a seu favor pra você me ganhar. Comecei lendo só as regras que te beneficiavam, bem fácil. Depois acabei inventando novas regras pra te ver vencer e fui ignorando mesmo elas, até que eu me vi jogando por você. E pouco a pouco notava que seus olhos sequer estavam no jogo. Via, distraidamente, coisa qualquer. Notava o formato das nuvens, o vento nas folhas, os aviões que passavam e comentava comigo as notícias do dia enquanto eu me cansava sustentando o meu e o seu jogo. Eu te dei um jogo tão fácil porque eu queria que você (me ganhasse) e eu te daria a mim mesmo por prêmio. Mas você achou tudo muito complicado, tudo muito difícil, a cadeira dura, o objetivo do jogo cansativo. Você achou tudo tão chato! E eu? Bem, começou comigo jogando contigo. Até que me vi: minha cadeira vazia, meu jogo parado, e eu sentado no seu lugar tentando te fazer ganhar. Você? Levantou. Foi esticar as pernas. Ver a paisagem. 

Ver a paisagem... 


Phelipe R Veiga
Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 2021, 19h15

"é mistério mesmo ou só tirania?" (Luedji Luna)


quinta-feira, 14 de janeiro de 2021



Corpo.

De/manda. 

Ando. Tem fome. Como. Tem sede. Bebo. Quer se sentar. Sento. Dói. Levanto. Quer deitar. Deito. Quer coçar. Coço. Pinica. Estica. Amolece. Quer respirar fundo. Quer fechar o olho. Quer coçar o olho. Quer o que não sabe e eu que me vire pra encontrar. Ando. Quer prazer. Gozo. Quer chorar. Quer fungar. Descansar. Quer dormir. Durmo. Perco o sono porque quer pensar. Penso. Quer correr. Não tem pra onde. 

O corpo cavalga a alma até se precipitar. 

Não há.

Phelipe R Veiga. 

Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 2021, 14h53. 

"ouço a mulher de pele ardida 
dizer à boca do telemóvel
mas depois do enterro fico livre
e penso:
também eu conto com isso" 
(João Miguel Henriques)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

“TANTO...”

Há palavras que valem um vocabulário inteiro.

Elas são como caixas, um contêiner, uma comporta, uma ante-sala de um infinito de possibilidades semânticas.

Há palavras que parecem trazer consigo um eco siamês. Fosse ela um corpo, esse eco seria o osso, estrutura, como se sem toda sua infinita continuidade de dentro pra dentro, ela sequer pudesse sobreviver ou parar de pé.

Há essas palavras. Algumas verbo, outras ad/vérbios. Algumas terminadas com A, outras não. Todas, porém, acompanhadas de compulsórias reticências. 


São essas as palavras mais verdadeiras. Contam o grande segredo silencioso que se esconde por detrás de todo ruidoso falatório humano:


A palavra não diz nada! E é essa a sua gravíssima função. A de nos lembrar que palavra alguma diz qualquer coisa. Estamos sozinhos num vazio enorme que preenche tudo.


Há palavras. O que não há é sentido. 

E há palavras que denunciam isso. 


Feito a caixa de Pandora, ao abri-las com a língua afiada e desesperada, há um vazio interrompido unicamente por uma morna esperança de um dia poder dizer com ela alguma coisa. E quem sabe ser até entendido? 


Quem sabe?!


Não há!



Rio de Janeiro, 04 de janeiro de 2021. 20h22


“Quando pronuncio a palavra Silêncio,

destruo-o. Quando pronuncio a palavra Nada,

crio algo que não cabe em nenhum não-ser.” (Wislawa Szymborska)


(...)

Eu vi uma casa se despir. Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por ...