quarta-feira, 3 de abril de 2024

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Eu vi uma casa se despir.
Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por longo período um acessório leva na pele as marcas dele. Apagou as luzes como quem limpa, borrando a cara, a maquiagem. Desmontou os móveis e os empilhou como quem desmonta todo um figurino e cuidadosamente o dobra sobre a areia fofa. Eu vi a casa se despir de costas pra mim sem dizer nada. Quando já completamente nua ela me olhou e eu a olhei de volta. No detalhe de tudo que a compunha rememorei as alegrias e as agruras que tive em seu corpo agora tão oco e habitado por ecos. Jazia vazia, tão nostálgica como só um túmulo cheio poderia se comparar. Trocamos mais olhares. Fitei suas janelas nos olhos e sorrimos um pro outro com a discrição secreta de quem olha pelas fechaduras. Nos agradecemos mudos com a sensação de uma  intima cumplicidade. Como dois amantes que desfrutaram um do outro em comunhão justa e real, ambos em paz com a conjugação madura dos prazeres e pesares. Então ela iniciou sua marcha.

Dali ela caminhou lenta a entrar num mar de memória (de)composta de tanta coisa. Eu a via como quem assiste um por do sol que lentamente deixa de estar, deixa de ser. Entrou no mar e se diluiu feito o menino de água de Hugo Mãe, feito Alfonsina, agora deixando pegadas apenas nas profundezas das hipóteses e das associações que ainda virão. Nos despedimos e dali em diante ela será pra sempre passado, mesmo quando se fizer presente. 

Respirei. Tomei as coisas deixadas. 

O figurino desmontado, a maquiagem que sobrava logo ao lado, os acessórios e fui em direção oposta. Ela pertencia ao passado e a mim cabia desembrulhar todo um enorme presente. Era hora de fantasiar um novo corpo-casa. Ornamentar paredes novas com coisas novas e antigas. Ressignificar os espólios e, em memória de todas as casas que tive, desde a da velha e distante infância até as da adultes tão gentrificada, domiciliar um novo canto da feli-cidade. 

De agora em diante há um novo endereço onde chegam as minhas correspondências e entregas. 
Há! 

Rio de Janeiro, 03 de Abril de 2024.
Phelipe R Veiga

"Aprenderei a amar as casas
quando entender que as casas são feitas de gente
que foi feita por gente
e que contem em si a possibilidade
de fazer gente." (M. Campilho)

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Eu vi uma casa se despir. Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por ...