terça-feira, 11 de abril de 2023

Sobre o caminho.





Houve um tempo em que a vida se via longa, estendida adiante como um percurso pavimentado e visto do alto. Havia caminho e beira de caminho com aquelas florzinhas de mato multicoloridas e pequeninas delimitando a borda da estrada. Viver era um brincar de despetalar e dizer bem-me-quer e bem-me-quererá. E não que não tivesse tudo começado em um atoleiro enorme, um mangue do qual saí, mas era uma ascensão constante rumo a alguma coisa que, mesmo sem saber o que de fato era, eu via que havia. Acredite se quiser, eu tinha até companhia! 

Mas esse tempo passou. Foi se dificultando, me lembro, a partir do instante em que as minhas gastas sandálias arrebentaram. Primeiro eram as pedras e o calor do pavimento, depois, num dia após o outro o pisar em espinhos foi se tornando mais e mais frequente. E a vida é esse processo esteira de calendários que não te dá tempo de sentar a sacar fora espinho do pé. É pulando numa perna só enquanto aprofunda a dor de um pé que se pode aliviar o outro. As boas nuvens que costumavam dar sombra se foram, a vegetação ficou baixa e rígida, o caminho íngreme e pedregoso, e a companhia começou um gradual entreter-se com uma coisa ou outra de um outro caminho que me era invisível e inacessível, até que soltou a mão e se perdeu espinheiro adentro. Daí fui me vendo só, exausto e com a ladeira diante de mim. Ladeira. Essa formação de caminho que só te dá o céu e o curto prazo como horizonte. É um anúncio permanente de dificuldade. É um viver a dor pela promessa de que tudo que sobe, desce. Mas quando? Não se sabe.

Tem já uns muitos dias que eu cansei. Sentei-me a beira do caminho e me contento com os passarinhos que passam a caçoar e a fazer suas porcarias na minha cabeça, mas ao menos cantam suas injurias ao invés de me gritar. A grandeza dos dias é ladeira abaixo, memória e passado. A companhia é nostalgia, o problema é condição. Resta o que dá pra ser: eu, homem, me fingindo fetal, quase semente, flor de beira de caminho, esperando que a vida passe sem me perceber pra talvez parar de me porrar a cada instante com um inventivo golpe novo. Fico esperando que a chuva regue, o vento afague e eu, putrefato já por dentro, um dia apodreça também por fora e possa, adubo, florir em algo mais bonito e com alguma paz. Por agora só me restar restar assim mesmo, a beira do caminho, diante da ladeira, a fingir-me de planta. É essa minha fé, minha esperança, meu paraíso almejado: é botânico. O pós morte é esse querer ser, se vivo, inanimado, e se morto, imperturbável. E finalmente com alguma raiz que nutra. 

Phelipe Ribeiro Veiga
11 de Abril de 2023 - 14h01

"Cuando me despida de vosotros
Decid que era raro 
Y que siempre caía de pie
Decid que era bueno
O que al menos lo intenté,
Soy lo mejor que puedo" (Juan Gómez Canca) 

(...)

Eu vi uma casa se despir. Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por ...