terça-feira, 18 de julho de 2023

Sobre a lição em Mateus 13:12.




Pelo beijo, o tapa
Pela brisa leve, a tempestade
Pela solidariedade, a avareza.
Pela concessão, a irredutibilidade. 
Pelo cuidado, a ira. 

Eu vos dei meu tom calmo, meu ímpeto conciliador, minha tentativa de promoção de paz e de convergência. Eu tentei vos chamar pra mesa da negociação. Reconheci os pontos todos, concedi, abri mão, elogiei e pedi desculpas até pelo que nem sei se devia desculpas. Eu me despi e expus a nudez da minha vulnerabilidade e castrei com mudez a minha parca agressividade. Eu fiz de tudo! Eu dei tudo! E então eu baixei a cabeça, mas só no tempo de sentir o murro. O grito! A infâmia! A injustiça! 

E sempre que constato esse drama repetitivo de minha neurose eu me deparo com a recriminação de que não posso me fazer de vítima. Mas onde termina o me fazer de vítima e onde começa o ser vítima de fato? 

Sei que me faço de vítima não quando reconheço que sou vítima, mas quando dou ocasião a essa dramática compulsão, e é isso que precisa mudar.  

Sei, 
mas é como se não soubesse! 

Por toda vida tento fazer correto, ser justo, ser bom filho, bom cidadão, bom marido, bom companheiro de turma. O ser cuidado não é mérito. O ser amado não está garantido! Deus tem seus preferidos, e tem também o velho hábito de dar bolacha aos que já nascem herdeiros de fábricas de biscoito. O que me resta? Como posso ser diferente? 

Como desistir do resgate e resgatar a mim mesmo? Defender a mim mesmo? Cuidar de mim mesmo? Como resistir ao canto da sereia que ressoa sempre que alguém me demonstra uma mísera fagulha de cuidado?

Preciso conceber e praticar que é parte de me salvar do apuro o querer quem me quer, e é de um ofertar mais promissor a oferta às divindades que me abençoam e me fazem companhia, e não às que me ameaçam com danação eterna e solidão e maledicência. Aprendi mal. Preciso aprender melhor. 

Mas como se me arde tanta urgência que nem consigo raciocinar? 
Ainda não sei. Ainda não há. E é no "ainda" que reside toda minha esperança! 
Quiçá! 



Phelipe Ribeiro Veiga
Do mundo invertido das coisas em 18 de julho de 2023. 

"Porque àquele que tem, lhe será dado, e terá em abundância; mas àquele que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado." (Evangelho segundo Mateus, 13:12)

"Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão." - (Menino Jesus, Fernando Pessoa)

domingo, 2 de julho de 2023

Sobre a fé em Antônio.


Você nasceu numa quinta. Eu nasci numa quarta-feira.
Meu caminho se enlaçou ao seu por essa virtualidade antiga a que chamam paternidade. E foi daí que tirei as lições tão essenciais que hoje eu enumero mentalmente como a grave herança que você me deixou. Você me ensinou o frio na barriga, a dor de um tapa, o susto de um grito abrupto, o gosto pelos livros, a soltar pipas e também o que é a rejeição inerente mesmo aos amores correspondidos. 

Eu entendo. 

Você, perdido em si, tava muito ocupado sendo um filho sem pai pra que pudesse ser pai do filho que eu era. Mas a cada ausência sua eu delirava presença e brincava com o que restava da ressonância de suas escolhas, fossem elas boas ou ruins. Eu te adotei já de começo. De modo que te vejo em fotos onde você não estava, em aniversários que você não foi, te escuto em telefonemas que você nunca me fez. Eu preenchia não as lacunas, mas a sua ausência te amando em dobro pra compensar a sua falta. É feito fazer a hora extra do amor. Foi com você que eu desenvolvi primeiro esse mau-hábito de amar por mim e pelo outro pra fazer amores possíveis. A verdade é que você esteve pra mim, sempre, como o meu insubstituível e quase onipresente pai, mesmo quando não estavas. Mesmo quando parecias não querer sê-lo.

Enquanto você jogava com seus fantasmas te convertias no meu, e eu jogava ali, criança, com o que restava de uma sombra tua. Te amei, meu pai, mesmo quando em épocas coléricas eu te detestava e atribuía a você a fonte de todos os males. Torcia a cara ao sorrir diante do reflexo de uma porta de vidro e ver no meu sorriso o teu. Me afligia ao ouvir na minha risada a tua. Não me entenda mal, é que é amargo esse amor correspondido estranho. 

Fazias tanta falta! 

No fim, eu fiz voltas, peregrinações divinas e terrenas e foi tudo só pra te encontrar. Nesse meio tempo você fazia suas próprias peregrinações divinas e terrenas pra se encontrar. E nos esbarramos porque fui até você, e retomamos um risco num papel como quem nunca o interrompeu. Continuamos de onde paramos, e isso só foi possível porque pra mim a linha imaginária sempre persistiu e sempre persistirá. 

Hoje, reflito no espelho e na mente as nossas semelhanças concedidas, hora pela genética, hora pelas minhas alucinadas lembranças contigo. Sigo tirando lições das conversas que outros contam ter tido com você. Abuso das lembranças alheias e faço delas minhas lembranças, vivendo-as em imaginação. É a terna mendicância de um filho sem seu pai. 

Sou teu filho em tudo o que fostes e em tudo o que não fostes meu pai. 
Te sinto pai. Me sinto filho, e entendo sem muito entender como uma escolha pode ser feita tão a margem do mérito e em caráter tão definitivo. É que é de amor que se trata, e amar não é matéria de se merecer. E repito o que muito nos dissemos antes de você ir embora: estamos bem! 

Segues aqui nos meus poros e nos meus ossos e nos meus olhos, mesmo os tendo herdado de minha mãe e não de você. Seguimos carne e osso, pai e filho, e ainda brinco, criança, com a sombra tua, soltando pipas num céu só nosso que acesso apenas de olhos fechados.

Você morreu num sábado.
Quanto a mim, vou ficando por aqui um pouco mais, ainda sem data de validade conhecida. Sem saber em que dia da semana me ausentarei eu vou aturando as segundas e festejando as sextas e suportando os humores dos domingos. 
E vago por essa terra vasta em busca dessa tal absolvição que você aparentemente encontrou e eu ainda não. Mas essa você foi sem me ensinar nem em imaginação. 

Rio de Janeiro, 2 de julho de 2023, 23:19
Phelipe R Veiga.


"a vida é linda, meu filho!"



"Antônio querido
Preciso do Seu carinho
Se ando perdido
Mostre-me novo caminho
Nas Tuas pegadas claras
Trilho o meu destino
Estou nos Teus braços como se fosse Deus menino" (J. Velloso)

(...)

Eu vi uma casa se despir. Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por ...