sexta-feira, 15 de abril de 2016

"O que pode o corpo?"



Foto: Jean Paul Four


"O que pode o corpo?" (1)

A mão passa que eu nem vejo
a cabeça não para de pensar, o pau fica duro na hora imprópria, na hora H os olhos viram... e a barriga estufa bem na hora da foto, o coração dispara quando o medo vem, já a cabeça, de novo ela, está em outro lugar. O corpo em desgoverno. Sou onde não estou. O que se há de fazer? 

O corpo espremido dentro da roupa,
gravata no pescoço, sapato de couro no pé, desemprega-se o corpo.
O corpo reage à desconsideração da temperatura ambiente.
O corpo sua, estraga o cabelo, a roupa, o modelo.

O corpo Corpo-Ração, alimento pro sistema
Corpo recurso humano da produção.
O corpo-oração, do barro, do pecado
pra queimar ou ser ressuscitado.
O corpo produto, do consumo, de comer com a mão,
O corpo tesão!

Eu no corpo, atrás dos olhos, no peito, "pensando com os pés" (2). 

Vítima do corpo.
Vitimado corpo.

O que pode o corpo! 

Phelipe Ribeiro Veiga
15 de Abril de 2016, 20h39



(1) Spinosa
(2) Lacan




domingo, 6 de março de 2016

A mala perdida.

Só quem já perdeu uma mala sabe o que é. Fica o vazio do objeto perdido. 
Como aconteceu? O que eu poderia fazer para evitar? As coisas da mala, a mala e o ocorrido se vão para trás de um véu, fazem agora parte de um mundo de desconhecidos e de objetos perdidos. Aí você vasculha o ocorrido e se pergunta qual foi o exato momento da distração, pensa na estupidez de ter acreditado nas circunstâncias, pergunta-se onde estava com a cabeça em não prever o imprevisível agora tão descaradamente obvio, critica-se por ter sido tão soberbo e confiante. A mala. O avatar de tantas perdas. A mala perdida te faz pensar quem foi que a tomou, onde estará agora, quem está usando suas coisas. Dia frio, aquele casaco, será que o estão vestindo hoje? É fim de ano, será que viajam usando minha mala perdida? Pra onde ela tem ido? Lugares onde eu jamais pisarei. A mala perdida vem sobre trilhos como uma "louco/motiva" puxando vagões, e neles há o abraço pa-terno da infância jamais repetido, o cheiro da loção da avó já falecida, o sabor do natal na infância, a sensação de ter nas mãos a lancheira do primeiro dia de aula, o amor que se foi e virou a esquina pra nunca mais voltar, o fôlego daquele dia quase mortal num ingênuo banho de mar, o não que deveria ter sido sim e o sim que deveria ter sido não, e dezenas de dezenas de últimos momentos que revisitamos tão ávidos por refazê-los. Como pudemos perder tanto? A mala, um imenso trem fantasma! De onde vem? Pra onde vai? Será que embarcaríamos se tivéssemos a chance? 
Se ao menos pudesse tê-la em mãos de novo, segurá-la. Que intensidade haveria em reaver o que foi perdido! Talvez a partir dela tudo o mais pudesse ser re-ávido. Talvez refeito ou desfeito. Talvez reaver a mala mudasse o rumo da história inteira. 
A mala segue viagem sem mim puxando seus vagões, e hoje ela só me causa insônia.
A mala, perdida.
Amá-la, perdida...

Phelipe Ribeiro Veiga

07 de março de 2016, 01h03


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

A janela, a paisagem.
Haja nela a paz que age.

Hoje olha pelas mesmas janelas depois de dinamitada a paisagem.
Vê, decorada, flores na memória, quadros nas paredes dos fatos.

Lembra: Explodiu o quarto e o quarteirão. Inteiros, ficou tudo pela metade.
Sobrou pedra sobre pedra, 
e flor, 
e quadro, 
e memória, 
e parede, 
e quarto e quarteirão. 
Havia sobrado, 
havia paisagem.

Faltou explodir a outra parte. 
Faltou afogar as flores na sequidão, 
faltou guardar os quadros. 
Mais suspensos, 
suspeitos.
Faltou parede pros quadros.
Faltou desfiar as horas.
Faltou tecer orações
subordinadas, 
e quem sabe fechar a cortina ao menos. 

Faltou explodir a parte de dentro da janela.
A via nela, há paisagem
indestrutível. 


Phelipe R. Veiga
18 de fevereiro de 2016 - 12h41

"Voltar quase sempre é partir para um outro lugar." 
(Paulinho da Viola)


segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O Osso do desejo.



É o desejo, íntimo-e-dado, oferece-sido, mas envergonhado no canto, desafinado, constrangido com o só-riso do outro. É a rua, sem saída, o beco, a casa alheia: o desejo, o encontro, a vida. É o desejo no amasso, todo amassado, com a lou-cura. É a "negócia", o feminino do negócio que não negocia, nada, em águas turvas não se faz com-sessões. A tranque-eira que não funciona na beira e nem na tranca. É o dez-encontro ou o encontro onze, é a ré-volta fazendo rodeios sem peão, é o ímpeto de amante ama-dor. É a chuva bem guardada, sem guarda-chuvas. É o medo. É o desejo articulado em paralisias, arquiteto de engenharias, se perdendo sem querer perder, a fim de só per-doar. É o ímpeto de re-partir palavras só pra não ter que partir mais nada e jamais ter que partir de novo. Ih-rompeu, des-pedaço-sou. É o desejo, ou então sou eu. A costela, o dente? O Osso! 

Phelipe Ribeiro Veiga
25 de Janeiro de 2016 - 12h37

domingo, 10 de janeiro de 2016

O corpo consome-dor



O corpo de que a gente se serve, que a gente serve pro Outro e a quem a gente serve. Afinal pra que serve o corpo? Dedos paralelos exibem um cigarro se consumindo, mas o que consome o corpo quando consome o cigarro? O que consomem os dedos? Quando jogamos sua cabeça pra trás numa gargalhada, exibindo o pescoço, balançando os cabelos, enrijecendo o peito o que consome o corpo? O que queremos quando despimos o corpo ou quando cobrimos ele? Quando consome um instante? Uma imagem? Um outro corpo? Dá pra consumir um outro corpo? Esse invólucro do que somos, essa casca da fragilidade desconhecida que, dizem, está dentro. Essa prisão perpétua de estar onde estamos desde que nascemos até o momento de partirmos - partirmos? Acaso chegamos? Esse haver-se com o gozo nosso tão incompreensível que a gente tenta pluralizar, se diluir, acrescentar um monte de "a gente"e mais um tanto de "todo mundo" pra se sentir menos só. O corpo é esse visgo que se apegou, onde a alma por vezes habita o pé, outra hora a mão, depois a cabeça e de pois o peito esquerdo, onde a alma se perde lá dentro. Essa confusão é o corpo. Esses sinais ininteligíveis. O corpo que vai escorrendo por entre os dedos da ideia de ser quem somos pra sempre feito um punhado de areia, que vai derretendo, enrugando, ficando cansado, indisposto. O corpo que tanto pede, a quem tanto dissemos não promove sua vingança final. Ele se Es-vai. Ele diz nãos impossíveis de se dissuadir. O que consome o corpo quando se consome? E quando some? Quem consome o corpo? 

Phelipe R. Veiga
10 de janeiro de 2016

"Calcula quanto tempo credor, amante, superior ou cliente, te subtrai e quanto as querelas conjugais, as reprimendas aos escravos, as atarefadas perambulações pela cidade; acrescenta as doenças que nós próprios nos causamos e também todo o tempo perdido: verás que tens menos anos de vida do que contas" (Sêneca 4 a.c. / 65 d.c.)


(...)

Eu vi uma casa se despir. Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por ...