quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Sobre os efeitos cronológicos do sentimento.




Os sentimentos sim é que são os senhores do tempo. 

O amor torna um fim de semana uma vida inteira. O tédio, uma hora uma semana e meia. O sofrimento, seis meses em seis anos. Os afetos pesam a mão nos ponteiros dos relógios, rasuram calendários, nos transportam pra passados, nos empurram pra hipotéticos futuros. O sentir é viajar no tempo e no espaço. É ser e estar desafiando todas as leis da física. É inclusive estar em vários lugares ao mesmo tempo, e, às vezes, dois corpos ocuparem o mesmo lugar no espaço.

Entretanto, há dentre todos, o super efeito da tristeza. A mão mais pesada sobre os ponteiros do relógio. Isso porque o sofrimento não estanca o tempo, ele estraçalha o relógio. Ele não rasura o calendário, ele o arranca da parede e o faz em pedaços, fazendo mosaicos afrontosos no chão da cozinha, de modo que você perde a noção de continuidade e já não sabe de onde veio, pra onde vai, e nem sequer a ordem dos dias da semana. Você não sabe diferenciar o ontem do amanhã, nem que dia é hoje. O sofrimento nos encapsula e nos leva pra um lugar onde ser é doer e estar é sofrer. Tempo e espaço são abolidos violentamente. E se ou quando voltamos desse passeio nefasto, envelhecemos tanto. Envelhecem os sonhos, as esperanças, a credibilidade no bonito das coisas, o apreço na percepção do mundo. Isso porque mais que tudo, o sofrimento nos envelhece o olhar.  Perder-se no vácuo anacrônico pra onde nos leva nos pode custar a vida, podemos esquecer o caminho de volta e isso pode ser a extinção de tanta coisa do que somos, mesmo pros que se preserve um coração funcional no final de tudo. 

Diante do assalto do sofrimento só nos resta achar a máquina do tempo que é o encantamento de voltar a se alegrar. "Voltar" a estar feliz é retroceder, rejuvenescer, retocar a realidade e maquiar as marcas de expressão deixadas, recuperar cores perdidas e, frequentemente, tonalidades novas. Ganharmos de volta, dizem, um tal viço, um tão falado brilho. Mas a marca indelével do passeio no vazio do sofrer jaz ali. Uma cicatriz. Jamais seremos os mesmos. Jamais teremos a mesma idade de novo.

Eu, enquanto flutuo no vácuo, reflito e concluo: 

São sim os nossos sentimentos os senhores do tempo. 
E dentre eles, é sim o sofrimento o mais nefasto inimigo das horas. 

4 de outubro de 2023 (?) 
Phelipe Ribeiro Veiga


"Dentro de um livro na cinza das horas" - (AC)


"Orfeu menos Eurídice: coisa incompreensível!
A existência sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos.
Tu és a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo,
minha amiga mais querida!
Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
." (VM) 


"São mitos de calendário 
tanto o ontem como o agora, 
e o teu aniversário 
é um nascer toda a hora" (CDA)

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Sobre a atitude furta cor.




De fato.

Furta cor a tua atitude tão rasteira, deixando o que restava de nós monocromático. Feito filme antigo, cinema mutado, como um anacronismo. O apreço ao detalhe para machucar, a especificidade minuciosa do toque na ferida aberta e em câmera lenta me surpreende. Incolor, teu furto se deu feito uma mensagem na garrafa que, ao invés de você lançar ao mar, você a atirou na minha cara com uma violência travestida de normalidade. 

É verdade que há um tempo você me disse do normal que é pra você certa agressividade no amor. "Dizemos o que dizemos e depois é só se desculpar. Assim que era", você me disse. E falamos de como pra mim, concessionário doentiamente ilimitado pra ter paz, isso era impraticável. Portanto, não há novidade na agressão, e nem há ignorância da sua parte sobre o que você fez comigo, me conhecendo tanto. A novidade está no rigor ao capricho e ao detalhe. Das múltiplas versões de ti, essa eu ainda não conhecia.  

Desconheço tamanho preciosismo por eu ter convivido tanto com sua escusada personalidade tão usualmente distraída. Torço pra que seja uma habilidade nova. E que ela seja versátil o suficiente pra que você possa exercer a mesma minuciosa apreciação do sutil das coisas não só pra ferir mas também pra fazer feliz. A você e a seja lá quem for. 

Vinicius tinha razão quando dizia que era desprovido de cor todos os momentos de despedida. Você pode não ter me ensinado o porquê, mas definitivamente me mostrou o como.

Merecíamos mais? Quanto a nós eu não sei. 
Quanto a mim, definitivamente sim. 
Não há. 

Phelipe Ribeiro Veiga
02 de outubro de 2023 - 13h46

"Entra pra ver como você deixou o lugar
E o tempo que levou pra arrumar aquela gaveta
Entra pra ver, mas tira o sapato pra entrar.
Cuidado que eu mudei de lugar algumas certezas
Pra não te magoar. Não tem porquê. Pra ajudar teu analista
Desculpa." (Cícero) 
 
"Mais tarde lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. Lembrar-se-ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação. " (VM)

"Giro um simples compassoE num círculo eu faço o mundo (que descolorirá)" (VM)


sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Sobre o meu lado da história.

Há sempre muitas maneiras de contar uma história, e a nossa eu sempre escolherei contar mesmo é pelo começo. E não porque ela tenha caído no clichê dos dias ou na rotina ensossa dos que se deixam carcomer pelo tédio e pela seguridade de um amor tácito e palpável. Não. Mas porque admiro a integridade do que fomos capazes de ser e fazer, e as boas histórias se fazem num arco crescente que carece de ser contada é pelo começo mesmo. A nossa, pra mim, será sempre assim. 

Foi com você que aprendi a gravidade das conversas, a não banalizar as reclamações e da importância do entendimento, fazendo valer bem mais o que digo do que o que falo. Aprendi que posso ser amado de modos distintos aos meus modos de amar. Aprendi que a leveza precisa ter seu lugar. Aprendi limites e aprendi da falta que faz perdê-los de vista. Aprendi o respeito e aprendi a nuclear importância da admiração. Foi em nós que aprendi a parceira e o companheirismo em sentidos para os quais eu nunca tinha me deixado ser encontrado antes. Compartilhávamos o pão sob os céus dos quatro pontos cardeais. Você me ensinou a ter pequenas e grandes coragens e a dar grande importância aos meus pequenos medos. Você me ensinou que dá pra tentar um pouco de tudo e que não custa acreditar. Além disso, também me ensinou a gostar de cebola e a beber café sem açúcar. 

Por essas e tantas coisas é que o que levo de ti não é o que a mágoa mancha, o que o medo da perda arranha nem o que o apego, tornado em aperto, acabou por produzir. O que levo é o homem com olhar e olhos de menino choroso ao pé de um barco sob um céu longe daqui me explicando que não sabia o que fazer, mas que sabia o que queria. Levo a lembrança de sua risada que ri com o corpo todo. O abraço em fuga. Os hábitos estranho e engraçados. As composições diárias e os apelidos esquisitos. A companhia que inexplicavelmente me fez ficar tanto e me faz ser tão pesado partir. Guardo de ti experiências enormes, saudades gigantescas e um grande amigo de quem sempre sentirei falta. Uma vez você, raivoso, me disse não ser extraordinário. E talvez não o seja. Talvez tampouco eu o seja. Mas foi extraordinário o que fomos capazes de ser. Foi e terá sido, pra sempre, uma grande aventura. 

Quanto a você, do seu lado, sei pouco ou nada. Mas estou em paz. Eu e minha saudade nos sentamos tarde sim, tarde também a lamuriar e trocar lembranças, e rimos de umas, choramos de outras e, fazendo o melhor que podemos, e em prol de que lembrar seja o mais gostoso possível, desviamos ao máximo dos ressentimentos, estes tão naturais de histórias longas. O meu lado da história é esse e de mim ninguém pode tira-lo. É o meu pra sempre que deu pra fazer. É pitoresco, fantasioso como todo amor precisa ser pra poder ser, e é triste como só as melhores lembranças necessariamente são. Mas, acima de tudo, ainda que só e ainda que só meu, é meu. Pra sempre. 

22 de setembro de 2023, 19h50
Phelipe Ribeiro Veiga. 

"Não, nada irá neste mundo
Apagar o desenho que temos aqui
Nem o maior dos seus erros
Meus erros, remorsos
O farão sumir.
(...) 
Nada, nem que a gente morra
Desmente o que agora
Chega à minha voz" (Caetano Veloso) 

"Barreremos cada uno ‘pa’ su casa
y quizá aprenderemos cuatro cosas nuevas,
no se borrará tu olor por más que llueva,
que el amor que deja huella no fracasa." (Juan Gomez Canca) 

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Sobre um corolário de sombras.





Pouco a pouco as coisas vão ganhando titularidades e a casa onde moro vai sendo habitada por um mobiliário estranho. Nem os quadros estão mais nos mesmos lugares, apesar de não terem se movido um centímetro. Talvez porque o que mudou foram as paredes. Faz parte desse meu cotidiano trânsito entre dois mundos. Um pé no passado e outro no presente, sob um abismo obscuro dividindo os dois a que apelidei de futuro. 

Vejo uma sombra passando da cozinha pro quarto, voltando do banheiro pra sala. Vivo eu e ela, a sombra. A sombra cobre a metade do quarto, da sala, do sofá e do meu pensamento. Dotada de toda uma autonomia, caminha daqui para acolá e faz suas coisas, e cantarola num eco distante. Ponho música alta pra ensurdecer-me e finjo não notar o fantasmagórico mover de coisas na cozinha quando já não há ninguém. Às vezes me deixa copos pra eu lavar. Eu lavo. Ela também me deixa contas pra eu pagar. Eu pago. É tributário o meu convívio com ela. 

Hoje o acordar é um gradual desvanecer do mundo ao meu redor, é assistí-lo (a) perder resoluções. E pouco a pouco a sombra dá as mãos a uma ciranda de outras sombras, compondo o pesado corolário que levo sobre a cabeça. É minha coleção de despedidas. Prêmios de minha incompetência em fazer o tempo parar. Em fazer durar chuvas de verão ou encerrar estios antes que me sequem as lavouras todas. É a repercussão desse meu timing desencontrado de todos os demais ou quem sabe é só pura má sorte ou azar, ou os dois, caso não sejam a mesma coisa. 

Ouço as portas se fecharem, todas. O virar de chave, várias. As costas caminhando em direção às escadas ou aos elevadores ou portas. Fico eu, sempre igual e na mesma situação, mão nas chaves, testa colada à madeira das portas, olhos fechados, só e assombrado pela sobra última que levo presa à planta dos pés e que me aponta o dedo acusatoriamente. Se ao menos dentre tanta sombra uma me servisse para sentar-me embaixo dela e ler um livro. Mas nem isso. Apenas me pesam a cabeça e o peito. Apenas. 

Não há.

Phelipe Ribeiro Veiga
Rio, 18 de setembro de 2023. 11h52


"Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de seccionar aqueles dois mundos que eram ele e ela. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se muito longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce." (Vinicius de Moraes) 

"It's strange what desire will make foolish people do" - Chris Isaak

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Sobre a recordação de uma recordação de uma recordação de tempos mais eróticos.




Não havia sequer uma porta. Esse batente que em ambientes fechados emoldura todas as partidas ali não existia.  Havia sobre nós apenas o céu estrelado que emoldura todas as coisas vivas. O vinho gotejava da boca da garrafa e se misturava às areias embriagando o corpo inteiro da praia. O mar se esgueirava curioso praia acima, sorrateiramente espiando o nosso transe e a nossa transa. Tudo era maresia e uma composição impossível entre silêncio e canção. Seus poros suavam mar e evaporavam estrelas. Suspirávamos ventanias litorâneas. Nós e a praia e o céu havíamos nos unido. Éramos uma só existência. Eu sei disso porque quando chegou o momento eu senti as areias pulsarem, o vento gemer, o mar ejacular sobre a terra e o céu se contrair. A natureza inteira gozou conosco. E foi naquela noite enquanto você, emoldurado de amanhecer, se lavava no mar ainda excitado por nós que eu descobri que Caetano também cantava em inglês. Às vezes me pego pensando em quanta saudade aquela praia não deve sentir de nós! 

Phelipe Ribeiro Veiga
21 de fevereiro de 2014 - 20:13
(postado em 22 de agosto de 2023 às 13h00)

No verde lençol da areia 
Um marco ficou cravado 
Moldando a forma de um corpo 
No meio da cruz de uns braços. 
Talvez que o marco, criança 
Já o tenha lavado o mar 
Mas nunca leva a lembrança 
Daquela noite de amores 
Na praia do Vidigal. (Vinicius de Moraes)

domingo, 20 de agosto de 2023

Sobre o desajeito e as formas de amar.




Muito se fala de como o amor é o mais belo dos sentimentos. Fala-se de valorizar o amor. De sua raridade. De não deixa-lo escapar. De se brigar por ele. Quando o que mais importa é a forma com que se ama ou se é amado. O encontro com o amor se faz épico ou trágico a depender do modo como se dá esse encontro.

Afinal, faz menos estrago um inimigo que nos odeia de maneira ética do que um amante que nos ama de modo desajeitado. É grave a coisa do desajeito. É um bicho em forma de comportamento que deforma qualquer sentimento. É perdoável que às vezes ele advenha da falta de prática, da inexperiência ou até da incompetência. E é verdade também que há por aí os bem intencionados incapazes da busca por se amar bem, e que deus nos proteja desses pequenos monstrinhos inimputáveis. Destes não nos restará sequer o direito de nos ressentirmos. Eles não tem culpa de nascerem assim. 

Mas como diferenciar a ignorância como condição da ignorância como adesão em forma de álibi e estratégia para obtenção de seus consequentes privilégios? Da ignorância como um tipo de anistia a que se apela para não se ajeitar no seu modo de amar? Há esse caso em que um certo tipo de índole configura uma postura indolente, não zelosa e preguiçosa diante do labor cansativo advindo desse compromisso estruturante do encontro saudável de dois (ou mais), que é o bem viver. É a preguiça que, acumulada, se desvela num desmerecimento absoluto. Quem tem preguiça de amar de um jeito bom não mereceria ser amado de jeito nenhum. Para a  sorte destes (e para o azar de muitos) o amor não é questão de mérito.

Fato é que sem dedicarmos tempo a reconhecermos no amor uma forma, podemos estar apoiando a vida num pedregulho cortante, ou perdendo a possibilidade de amarmos melhor. Há que se compor. Há que se esculpir com suor e esforço, o que se apresente digno de mútua contemplação. E é essencial que se goste de como se gosta e de como se é gostado. Faz sentido admirar-se e respeitar-se enquanto sujeito que ama da melhor maneira que consegue. Isso nos condiciona também enquanto recebedores do amor de outros. Além disso, importa olhar pro amor que se faz junto e esboçar um suado sorriso de satisfação. Um gozo que alimenta a gente de uma certa fome que reside em algum lugar que fica entre a nossa pele e o resto do mundo. 

Porque o amor é para isso. Para contemplação e saciedade dessa fome estranha que parece nascer com a gente. Uma urgência de pertencer e de se aconchegar. Feito uma busca por um novo útero que nos caiba de algum modo. Um refúgio para esse "por enquanto" a que chamamos vida. O problema das fomes é a condição na qual elas se dão. A depender do tamanho da fome, migalhas se tornam banquetes. A depender do desespero por aconchego, um pedregulho pode se confundir com obra de arte abstrata só pra gente arranjar no quê se apoiar. E com o tempo a gente se acostuma às dietas mais indignas e às posições mais desconfortáveis. 

Umas vez o escultor disse que a maneira mais rápida de descobrir as partes essenciais de uma escultura era empurrá-la de um penhasco. Eu diria que quem chega ao ponto de empurrar penhasco abaixo o que tão duramente custou esculpir, pode ser que não compreenda o árduo trabalho de amar. É a forma a que se deve valorizar, e é pela forma que devemos lutar. Quem atira o amor morro abaixo para descobrir o quê de essencial há, ou é por que o essencial já se perdeu de vista, ou porque talvez nunca tenha estado ali, ou ainda porque é mesmo só mais um desajeitado. 

20 de agosto de 2023. 21h52
Phelipe R Veiga





terça-feira, 8 de agosto de 2023

Sobre a queda da Babilônia.

 


De longe, depois de um longo silêncio, houve o estalo. 


(...)


Lascou feito um grito rochoso desesperado, e, depois de um breve silêncio pontilhado por pequenas pedrinhas rolando, começou a desmoronar em som crescente.

de estalo à ruído, 

de ruído à estrondo

de estrondo ao som do fim de um mundo. 

Era no meu peito a tragédia, porém se expandia por todo meu corpo. Ecoava pelos meus braços e pelas minhas mãos trêmulas sacudindo até as pontas dos meus dedos. Minhas pernas contraíram-se de modo a sustentar o que restava de pé, e o fez, suportando o peso inteiro do desastre.

Os enormes pedaços caíram nos mares que ilhavam o monumento criando gigantescas ondas nos meus olhos salgados e esverdeados que engoliram tudo. Afogaram meus olhos de tal modo que o mundo ao meu redor ainda jaz submarino. 

O tremor do desmoronamento se pôde sentir até pelos pensamentos mais simplórios que, desatentos cruzando minhas pontes sinápticas, caíram vários para um esquecimento de nunca mais. Conexões se romperam e áreas inteiras foram feitas estéreis e isoladas das minhas intensas e coloridas tempestades neuronais. Uma densa nuvem de poeira subiu pescoço acima, passando pela garganta, escalando pelo tronco encefálico e cobrindo tudo, inclusive as memórias. Ali a visibilidade ainda é nenhuma. O estrago, desconhecido.

Pelo romper das barragens que o desmoronamento do peito causou, a boca foi drenada, ficando apenas um gosto amargo do lodo deixado pelas palavras que, feito peixes afogados no seco, saltavam naqueles espasmos característicos de quem já não vive mas ainda não morre. 

Meus ouvidos, sempre atentos ao exterior, ensurdeceram-se pelo ressoar intenso que recorria cada pedaço do meu interior. Estava ensurdecido pro mundo pelo som que ecoava vindo de dentro de mim. 

Meus poros vazaram pó e vapor quente. Feito uma chaleira, gritavam. Clamavam e avisavam: Caiu! Caiu! 

Meu peito desmoronou. Minha alma, tectônica, moveu-se e deslocou meu norte de um modo que ainda não o encontro. Minha dor entrou em erupção. Meu corpo ainda treme inteiro sem saber quais estruturas foram comprometidas e o que mais ainda está por cair.
 
Enquanto isso, meus poros seguem gritando: 

"Caiu! Caiu!"

08 de agosto de 2023 - 14h19
Phelipe Ribeiro Veiga


"A Babilônia caiu de repente e ficou arruinada. Lamentem por ela! Consigam bálsamo para a ferida dela; talvez ela possa ser curada. "Gostaríamos de ter curado Babilônia, mas ela não pode ser curada; deixem-na e vamos cada um para a sua própria terra, pois o julgamento dela chega ao céu, eleva-se tão alto quanto as nuvens." (Jeremias, Cap 51, vers. 8 e 9) 


"Preste atenção, querida
De cada amor, tu herdarás só o cinismo
Quando notares, estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés" (Cartola) 





quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Sobre dez-acertos de contas com a realidade.




Desabrigo.
Desproporção. 
Desequilíbrio.
Desamparo.
Desacerto.
Descompromisso.
Destituição.
Desmoronamento.
Desenlace.
Desilusão.

E no meio de tanto prefixo desafixado, 
descolados feito fita adesiva recolocada, 
é que, 
pela via da d'existência, 
resiste ainda a frágil alternativa 
queimando feito vela ao vendaval: 
me resta a inútil tentativa de
desabrochar. 

Rio de Janeiro, 2 de agosto de 2023. 22h00
Phelipe Ribeiro Veiga

"Que esterco metafísico os meus propósitos todos!

Uma angústia, 

Uma desconsolação da epiderme da alma, 

Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço... (...)

Dêem-me de beber, que não tenho sede!" (Fernando Pessoa)


"I'll talk but you won't listen to me
And I know your answer already" (
Sinead O'connor)








terça-feira, 18 de julho de 2023

Sobre a lição em Mateus 13:12.




Pelo beijo, o tapa
Pela brisa leve, a tempestade
Pela solidariedade, a avareza.
Pela concessão, a irredutibilidade. 
Pelo cuidado, a ira. 

Eu vos dei meu tom calmo, meu ímpeto conciliador, minha tentativa de promoção de paz e de convergência. Eu tentei vos chamar pra mesa da negociação. Reconheci os pontos todos, concedi, abri mão, elogiei e pedi desculpas até pelo que nem sei se devia desculpas. Eu me despi e expus a nudez da minha vulnerabilidade e castrei com mudez a minha parca agressividade. Eu fiz de tudo! Eu dei tudo! E então eu baixei a cabeça, mas só no tempo de sentir o murro. O grito! A infâmia! A injustiça! 

E sempre que constato esse drama repetitivo de minha neurose eu me deparo com a recriminação de que não posso me fazer de vítima. Mas onde termina o me fazer de vítima e onde começa o ser vítima de fato? 

Sei que me faço de vítima não quando reconheço que sou vítima, mas quando dou ocasião a essa dramática compulsão, e é isso que precisa mudar.  

Sei, 
mas é como se não soubesse! 

Por toda vida tento fazer correto, ser justo, ser bom filho, bom cidadão, bom marido, bom companheiro de turma. O ser cuidado não é mérito. O ser amado não está garantido! Deus tem seus preferidos, e tem também o velho hábito de dar bolacha aos que já nascem herdeiros de fábricas de biscoito. O que me resta? Como posso ser diferente? 

Como desistir do resgate e resgatar a mim mesmo? Defender a mim mesmo? Cuidar de mim mesmo? Como resistir ao canto da sereia que ressoa sempre que alguém me demonstra uma mísera fagulha de cuidado?

Preciso conceber e praticar que é parte de me salvar do apuro o querer quem me quer, e é de um ofertar mais promissor a oferta às divindades que me abençoam e me fazem companhia, e não às que me ameaçam com danação eterna e solidão e maledicência. Aprendi mal. Preciso aprender melhor. 

Mas como se me arde tanta urgência que nem consigo raciocinar? 
Ainda não sei. Ainda não há. E é no "ainda" que reside toda minha esperança! 
Quiçá! 



Phelipe Ribeiro Veiga
Do mundo invertido das coisas em 18 de julho de 2023. 

"Porque àquele que tem, lhe será dado, e terá em abundância; mas àquele que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado." (Evangelho segundo Mateus, 13:12)

"Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão." - (Menino Jesus, Fernando Pessoa)

domingo, 2 de julho de 2023

Sobre a fé em Antônio.


Você nasceu numa quinta. Eu nasci numa quarta-feira.
Meu caminho se enlaçou ao seu por essa virtualidade antiga a que chamam paternidade. E foi daí que tirei as lições tão essenciais que hoje eu enumero mentalmente como a grave herança que você me deixou. Você me ensinou o frio na barriga, a dor de um tapa, o susto de um grito abrupto, o gosto pelos livros, a soltar pipas e também o que é a rejeição inerente mesmo aos amores correspondidos. 

Eu entendo. 

Você, perdido em si, tava muito ocupado sendo um filho sem pai pra que pudesse ser pai do filho que eu era. Mas a cada ausência sua eu delirava presença e brincava com o que restava da ressonância de suas escolhas, fossem elas boas ou ruins. Eu te adotei já de começo. De modo que te vejo em fotos onde você não estava, em aniversários que você não foi, te escuto em telefonemas que você nunca me fez. Eu preenchia não as lacunas, mas a sua ausência te amando em dobro pra compensar a sua falta. É feito fazer a hora extra do amor. Foi com você que eu desenvolvi primeiro esse mau-hábito de amar por mim e pelo outro pra fazer amores possíveis. A verdade é que você esteve pra mim, sempre, como o meu insubstituível e quase onipresente pai, mesmo quando não estavas. Mesmo quando parecias não querer sê-lo.

Enquanto você jogava com seus fantasmas te convertias no meu, e eu jogava ali, criança, com o que restava de uma sombra tua. Te amei, meu pai, mesmo quando em épocas coléricas eu te detestava e atribuía a você a fonte de todos os males. Torcia a cara ao sorrir diante do reflexo de uma porta de vidro e ver no meu sorriso o teu. Me afligia ao ouvir na minha risada a tua. Não me entenda mal, é que é amargo esse amor correspondido estranho. 

Fazias tanta falta! 

No fim, eu fiz voltas, peregrinações divinas e terrenas e foi tudo só pra te encontrar. Nesse meio tempo você fazia suas próprias peregrinações divinas e terrenas pra se encontrar. E nos esbarramos porque fui até você, e retomamos um risco num papel como quem nunca o interrompeu. Continuamos de onde paramos, e isso só foi possível porque pra mim a linha imaginária sempre persistiu e sempre persistirá. 

Hoje, reflito no espelho e na mente as nossas semelhanças concedidas, hora pela genética, hora pelas minhas alucinadas lembranças contigo. Sigo tirando lições das conversas que outros contam ter tido com você. Abuso das lembranças alheias e faço delas minhas lembranças, vivendo-as em imaginação. É a terna mendicância de um filho sem seu pai. 

Sou teu filho em tudo o que fostes e em tudo o que não fostes meu pai. 
Te sinto pai. Me sinto filho, e entendo sem muito entender como uma escolha pode ser feita tão a margem do mérito e em caráter tão definitivo. É que é de amor que se trata, e amar não é matéria de se merecer. E repito o que muito nos dissemos antes de você ir embora: estamos bem! 

Segues aqui nos meus poros e nos meus ossos e nos meus olhos, mesmo os tendo herdado de minha mãe e não de você. Seguimos carne e osso, pai e filho, e ainda brinco, criança, com a sombra tua, soltando pipas num céu só nosso que acesso apenas de olhos fechados.

Você morreu num sábado.
Quanto a mim, vou ficando por aqui um pouco mais, ainda sem data de validade conhecida. Sem saber em que dia da semana me ausentarei eu vou aturando as segundas e festejando as sextas e suportando os humores dos domingos. 
E vago por essa terra vasta em busca dessa tal absolvição que você aparentemente encontrou e eu ainda não. Mas essa você foi sem me ensinar nem em imaginação. 

Rio de Janeiro, 2 de julho de 2023, 23:19
Phelipe R Veiga.


"a vida é linda, meu filho!"



"Antônio querido
Preciso do Seu carinho
Se ando perdido
Mostre-me novo caminho
Nas Tuas pegadas claras
Trilho o meu destino
Estou nos Teus braços como se fosse Deus menino" (J. Velloso)

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Sobre a estação Montevideana




Sento e contemplo a partida de mais uma balsa rasgando as águas com gente acenando ao que fica e mirando no que há nesse horizonte plano tão cheio de relevos invisíveis.
Ali sentado no banco à beira do Rio assisto a partida. por que todo mundo logra partir e eu só consigo estar partido? Seria isso parte de minha oficiosa vida de vendedor de tickets alheios? Ganho a vida contemplando destinos, averiguando possibilidades de outros, mas meu crachá segue pendurado na altura do peito que levo tão partido que nem se reconhece como tal. Uma âncora credencial descansando a seco sobre um coração em pó. Um punhado de areia sem água que lhe faça praia. Uma beira de rio em época de grave estio. Uma poeira terrosa que a brisa afaga mas que se nega a carregar-la pelo muito peso e densidade que tem. Faz já muito tempo que sonho com essa fuga Montevidana. Mas parece que por mais que caminhe é só por dentro dessa mesma estação na qual sigo residindo. Restando. E é por dentro dessa exposição que me arrisco e dou meia volta. Na impossibilidade de avançar eu fuxico o ontem em busca de algum amanhã. “Vuelvo al Sur”, afinal, “Oeste é meu norte”.

Ando "fazendo festinha em mim mesmo como um neném até dormir", e é o que tem dado pra fazer. Tenho comemorado todas as festas e chorado todos os eventos aqui mesmo, na estação, segurando esse bilhete vencido, amassado, sem data ou destino com as duas mãos. Não é o que queria pra mim mas é o que tem dado pra fazer. Ser e estar da melhor maneira que dá. Não há tudo ou mesmo muita coisa, parece, mas alguma coisa ainda há. 
E aqui sigo sentado, vendo mais uma balsa zarpar.

Volto ao sul. E o sol do céu do sul, já tão sem dono, é frio. Invernal. Volto ao sul tanto quanto se é possível voltar a qualquer lugar. Volto ao sul em busca de uma absolvição qualquer, uma solução (salobra) ou um batismo no Rio da Prata que me faça nova criatura e me ajude a desancorar. Volto como quem volta mas tentando avançar. E a impossibilidade se senta em meu peito e me impede respirar.
Não se equivoque, me quero(,) bem.


Montevideo, 15 de junio de 2023

Phelipe Ribeiro Veiga


“E o meu coração embora finja fazer mil viagens fica batendo parado naquela estação” (CV)

Aprenderás a llevar tu vida en una maleta

Y cuando la pena aprieta se llora antes de cantar” (Canca)



terça-feira, 11 de abril de 2023

Sobre o caminho.





Houve um tempo em que a vida se via longa, estendida adiante como um percurso pavimentado e visto do alto. Havia caminho e beira de caminho com aquelas florzinhas de mato multicoloridas e pequeninas delimitando a borda da estrada. Viver era um brincar de despetalar e dizer bem-me-quer e bem-me-quererá. E não que não tivesse tudo começado em um atoleiro enorme, um mangue do qual saí, mas era uma ascensão constante rumo a alguma coisa que, mesmo sem saber o que de fato era, eu via que havia. Acredite se quiser, eu tinha até companhia! 

Mas esse tempo passou. Foi se dificultando, me lembro, a partir do instante em que as minhas gastas sandálias arrebentaram. Primeiro eram as pedras e o calor do pavimento, depois, num dia após o outro o pisar em espinhos foi se tornando mais e mais frequente. E a vida é esse processo esteira de calendários que não te dá tempo de sentar a sacar fora espinho do pé. É pulando numa perna só enquanto aprofunda a dor de um pé que se pode aliviar o outro. As boas nuvens que costumavam dar sombra se foram, a vegetação ficou baixa e rígida, o caminho íngreme e pedregoso, e a companhia começou um gradual entreter-se com uma coisa ou outra de um outro caminho que me era invisível e inacessível, até que soltou a mão e se perdeu espinheiro adentro. Daí fui me vendo só, exausto e com a ladeira diante de mim. Ladeira. Essa formação de caminho que só te dá o céu e o curto prazo como horizonte. É um anúncio permanente de dificuldade. É um viver a dor pela promessa de que tudo que sobe, desce. Mas quando? Não se sabe.

Tem já uns muitos dias que eu cansei. Sentei-me a beira do caminho e me contento com os passarinhos que passam a caçoar e a fazer suas porcarias na minha cabeça, mas ao menos cantam suas injurias ao invés de me gritar. A grandeza dos dias é ladeira abaixo, memória e passado. A companhia é nostalgia, o problema é condição. Resta o que dá pra ser: eu, homem, me fingindo fetal, quase semente, flor de beira de caminho, esperando que a vida passe sem me perceber pra talvez parar de me porrar a cada instante com um inventivo golpe novo. Fico esperando que a chuva regue, o vento afague e eu, putrefato já por dentro, um dia apodreça também por fora e possa, adubo, florir em algo mais bonito e com alguma paz. Por agora só me restar restar assim mesmo, a beira do caminho, diante da ladeira, a fingir-me de planta. É essa minha fé, minha esperança, meu paraíso almejado: é botânico. O pós morte é esse querer ser, se vivo, inanimado, e se morto, imperturbável. E finalmente com alguma raiz que nutra. 

Phelipe Ribeiro Veiga
11 de Abril de 2023 - 14h01

"Cuando me despida de vosotros
Decid que era raro 
Y que siempre caía de pie
Decid que era bueno
O que al menos lo intenté,
Soy lo mejor que puedo" (Juan Gómez Canca) 

segunda-feira, 27 de março de 2023

Sobre a tranquilidade de um gato pixelado.




As mensagens seguem não lidas, os controles descontrolados e o juízo desajuizado. É que tenho me ocupado insistentemente dos erros de processamento de minha vida. Há algo perdido no encontro entre as novidades de um novo sistema e o sistema legado que trago comigo. E por mais que programe e reprograme, a linguagem talvez seja o problema. Já tentei disquetes, CDs e nuvens, e às vezes parece é que me falta o driver de alguma coisa que se assemelhe com essa tal felicidade. O hardware dá os sinais de uma crise enorme no software dos meus sentimentos. Houve um tempo em que culpava a qualidade de minha placa mãe ou mesmo quão antiquada era a minha forma de conexão. "modem antigo", pensava. Mas uma vez feito o upgrade com roteadores e tudo, tudo segue igual. Depois veio você, um trojan bem intencionado, e o tanto que eu achei que uma limpeza de disco resolveria. Tampouco. Hoje eu sigo sem saber. Noto indiferente os ciberataques que sofro, os vírus que me chegam e eu displicentemente os deixo entrar, mesmo entendendo tão claramente que pra essa vida não há backup possível. Compro o risco alimentado pela esperança de um dia poder Reiniciar e, quem sabe, fluir sem tantas travas e congelamentos. Há algo da mecânica do corpo que impõe um cansaço incompreensível a mim que sonho tanto em ser máquina. Há algo no funcionamento das emoções que impõe uma confusão exaustiva a mim que sonho tanto em ter um sistema minimamente funcional. No fim, com meus olhos de células vivas confusas, desde esse corpo de carne e osso exausto, contemplo a evidente plenitude de um gato dormindo e penso que, ainda que não faça ideia de como chegar lá, as carnes também conseguem de algum lugar emular a paz dos CPUs novinhos em folha. Sonho com a tranquilidade dos felinos e me consolo de poder contemplar pelo meu notebook aceso e ajustado, o vídeo no YouTube de um lindo gato todo construído em pixels luminosos dormindo numa tranquilidade insondável. Suspiro em absoluta tela azul num estado de inveja de difícil processamento. 
Não há. 

27 de março de 2023. 14h22
Phelipe Ribeiro Veiga

"Eu pedi pra ser feita da poeira
Do rastro da estrela que risca o céu
Na regra de 3 aqui dessa conta
Resolvo também esse mundo real" (Maria Céu)

"e seiQue cérebro eletrônico nenhum me dá socorroEm meu caminho inevitável para a morte" (Gilberto Gil) 

sexta-feira, 3 de março de 2023

Sobre as ruínas.





Chego à porta do apartamento que costumava ser casa. 

Respiro.

Ponho minhas coisas no chão do corredor e desabotoo a camisa. Desabotoo a calça. Me dispo de cordão e anéis. 

Respiro. 

Enfio a chave e giro. 
De peito aberto e olhos fechados eu sinto o impacto e ouço o tiro. O ensaio desse momento na minha cabeça foi tão longo e durava há dias, de modo que a dor e o sangue parece que já estavam comigo antes. Vou, sangrando ainda, tomando consciência de que parte do que era resta, parte do que foi se foi, mas não há mais nada ali, embora veja diante de mim tanta coisa. Um saque foi feito mas não às coisas mas sim aos meus sentimentos de mundo. Me roubaram algo por dentro. Flutuo tentando deixar a cena do crime contra o meu peito intacta para qualquer eventual investigação. Paralelamente, algo que não sei nomear de mim fica agonizando na entrada da casa. Passo por cima da coisa caída ensanguentada. 


Dentro. 


Não há nada mais triste que um armário vazio pela metade. 


Nada! 


Para tudo que vai há uma sombra que fica. Para cada espaço vazio existe um naco de angústia dobrada cuidadosamente a ocupar. Há cenas cuidadosamente passadas e penduradas em cabides. Sons. Cheiros. Um mundo de coisas que se foram mas que me assombram pela possibilidade de nunca irem de fato. Escorre das gavetas vazias palavras e caem ensopadas sobre o chão. Em cada lacuna existe uma memória. Nunca soube que saberia de cor o que ocupava cada espaço, sem titubear. Ali o perfume, ali o carregador do barbeador. Ali um porta-retrato. Sei dizer o lugar de cada frasco, cada item, cada coisinha. Quase as vejo ali. Agonizo na minha capacidade de lembrar. Meu dom dói (IA). 

Nas paredes, enormes feridas de marcas amareladas dos quadros retirados, as paredes sujas de uma sujeira que tinta nenhuma cobrirá, nenhum quadro novo substituirá. Por dentro das feridas, pela fresta delas, vejo dias, meses, anos. Os que vivemos, os que não vivemos, os que jamais viveremos. Passado, presente e futuro, em forma de concreto e argamassa ferida. E se encosto o ouvido na purulenta ferida das paredes, ouço seu riso. E já não há o que fazer. Se rastreio nas coisas tomadas a falta de apreço, dói. Se noto nas coisas deixadas o carinho, dói também. Me sinto uma enorme dor com pernas e olhos tendo anexo feito uma espinha na testa a pessoa que sou. 

Pobre casa que já não é lar. É uma enorme ruína. Um não sei quê com uma alta torre na qual queima um fogo brando, quase a se apagar na chuva dos afetos e no vento dos eventos, sob a erosão de um tempo que conta as horas em dias e os dias em semanas e as semanas em anos. Já houve esplendor ali, e nosso amor, na concretização de nosso lar, já foi farol para mim e pra você, e quem sabe até não só. Nosso amor já foi lugar. Já me foi refúgio e também o meu lugar favorito. Hoje é um projeto de sitio arqueológico de uma civilização que se consumiu a si mesma sem deixar explicações. Perguntarão os aventureiros que encontrarem as ruínas: o que aconteceu aqui? 

Eu me juntarei a eles a perguntar: 

O que aconteceu aqui? 
O que aconteceu aqui? 
O que aconteceu aqui? 

A pergunta ecoará por dentro das gavetas vazias, das feridas nas paredes e da ausência brutal de nós sem enquanto. 
Não há.


Phelipe Ribeiro Veiga
03 de março de 2023. 11h07

"Estala, coração de vidro pintado" - (Fernando Pessoa) 

"Eu ando tão dodói
Mas tão dodói
Que quando ando dói
Quando não ando dói" (Itamar Assumpção e Luiz Tatit)

"Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização" - ( Chico Buarque)

quarta-feira, 1 de março de 2023

Sobre três pedaços que compõem os restos.


I

Naquela noite quando você cruzou a porta e eu me despedi dizendo que te amava, você me respondeu um irado "eu sei". A pessoa que cruzou o batente daquela porta naquela noite nunca mais retornou. Desceu pelas escadas e caiu na correnteza das ruas da cidade e se perdeu. E mesmo que alguém muito parecido apareça vez ou outra, hora com mágoas, outras ostentando seu ímpeto por recomeços e sua possessão de quadros e mesas e cadeiras, a pessoa que me disse "eu sei" se perdeu escada abaixo, deixando pra trás um tipo de sombra. 

Agora resto eu aqui concebendo silhuetas nas cadeiras que são suas, nos sofás que são seus. 
A casa está arrumada mas de alguma maneira também arruinada. Não há sua caspa no travesseiro, copos diversos espalhados pela casa ou a pia do banheiro manchada de líquidos de lente de todas as manhãs. Não tem meu café da manhã me esperando no microondas, nem músicas compostas com nomes de gatos, nem os pequenos hábitos irritantes que me faziam te amar. Essas coisas não estão ali. Mas eu desconfio que as alucino. Vejo uma sombra cruzando  a porta, outra na beira da pia, outra no chuveiro, pernas cruzadas diante da tv, na mesa à minha frente. Vejo, sinto o cheiro e ouço, mas não ouso tocar. A memória não é pra se tocar. 

Você tem falado da necessidade de buscarmos advogados para os remendos de coisas. Coisas! Os dedos acenam um adeus e ficam os anéis, sempre. Hoje me peguei pensando se há justiça que me possa ajudar com coisas outras. Se posso processar a vida como ela é. Se há indenização possível para tanto investimento. Se há formas de brigar pelo direito de esquecer ou ser esquecido. Iria até a Suprema Corte para que ajustassem que eu conceba tanto afeto e tanta certeza de amar e no entanto seja tão desafortunado. Mas não há sumulas ou jurisprudências. Resta que se brigue pelo que pouco importa. 

II

E já que não me resta alternativa justa, eu fico aqui enterrando as coisas intangíveis, assistindo o barco que aos poucos descreve um arco e que evita atracar no cais (CB). Enquanto enterro os espólios assistido por sombras, afundo no piso rígido da sala. Afundo no metro quadrado mais caro que eu já pisei, na vertical para que, uma vez ido, não ocupe espaço. Desmonto e sinto que o que vivo é feito amputar o braço com um palito de dentes, uma palitada por vez. Por hora me despeço langorosamente, porque amanhã essa casa e essas paredes terão sucumbido de uma vez. 

E eu me pergunto, o que restará quando tanto resto tiver ganhado destino? 
O que será de mim já que não posso voltar a ser o que fui nem reaver o que passou? 

III

Andei refletindo, eu tão cético, que, se há um juízo pós morte, ele há de ser diante de si mesmo. 
Me vejo diante de um Phelipe não agigantado por glórias nem apequenado por misérias, mas de tamanho real, segurando uma balança e me pedindo o que levo no peito. Não os sentimentos, mas a dignidade que reservei pra mim mesmo e o compromisso que tive comigo. É assim que saldarei ou não o custo de haver vivido debaixo desse teto móvel de carne e osso, de dentro do qual terei passado pela vida sem estar nunca de todo desabrigado. Eu sinceramente não sei se tenho estado a altura desse compromisso, nem sei se estive ou se estarei, e não faço ideia do que farei comigo num juízo final eventual. Só espero que não me mande a mim mesmo de volta. Não suportaria decorar a fórmula de bhaskara e remendar o peito tantas vezes outra vez.
 

Phelipe Ribeiro Veiga
01 de março de 2023 - 13h54

"até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi." (Drummond) 

"é sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar" (Gilberto Gil)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Sobre o amor fazer pouco de mim.




São cinco refeições por dia somando 2300 a 2700 calorias.
Três banhos, e não mais que isso, mesmo se estiver calor.
A cama feita, a barba aparada e o cabelo penteado.
Os compromissos no lugar e na hora, o trabalho em dia e as contas pagas.
A vida gira num automático e é preciso mover-se a si mesmo, autômato. 
Mas isso é espetáculo, afinal.

A verdade é que o amor faz pouco de mim.
Reside invasora num cômodo dos fundos da casa em ruínas que sou 
e festeja sozinha um não sei o quê. 
Faz pra me irritar, pra me atingir, pra ostentar uma alegria a mim inacessível. 
Ela ri caprichosamente da minha desgraça 
e caçoa da minha falta de limite, da minha ausência de noção.
É uma bruaca assustadora e risonha, que quebra as minhas coisas e depois anda por cima dos cacos de vidro mas quem se corta sou eu.
Ela dança com uma taça na mão, bêbada, pisando sobre o meu orgulho e na minha razão. 
Faz um origami com minha estima e lança, 
passarinho de papel, na noite escura e chuvosa lá fora.
Eu não sei como desalojá-la e ainda não sei qual de nós dois acabará fora de mim.
Enquanto não resolvo seu despejo, há uma conduta a seguir.

É preciso chorar baixo, manter a postura e não se vitimizar. 
O ridículo precisa ser vivido reservadamente. 
O soluçar, abafado. 
Os murmúrios de rendição, secretíssimos. 
O ímpeto por desistir, jamais confesso.
É preciso desmoronar apenas por dentro e sem ruídos grandes. 
Por fora é músculo, pele, pelos, roupa e alinhamento.
É sorriso e confiança. 

E eu levo adiante esse espetáculo de orçamento baixo 
para um público pífio que me assiste com cara de tédio. 

Sorrio com o canto da boca trêmulo e os ombros encaixados ajustadamente.
E enquanto eu penso se passo no teste, se convenço os transeuntes de minha super/ação
ouço inequívoca a gargalhada alta e debochada do amor dentro da minha cabeça. 
O ridículo sou eu e o amor seguirá ainda fazendo pouco de mim.

Não há.

Phelipe Ribeiro Veiga
01 de fevereiro de 2023, 13h54

"Puedo escribir los versos más tristes esta noche. 
Yo la quise, y a veces ella también me quiso." Pablo Neruda

"A luz negra de um destino cruelIlumina um teatro sem corOnde estou desempenhando o papelDe palhaço do amor" - Nelsom Cavaquinho




(...)

Eu vi uma casa se despir. Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por ...