quarta-feira, 1 de março de 2023

Sobre três pedaços que compõem os restos.


I

Naquela noite quando você cruzou a porta e eu me despedi dizendo que te amava, você me respondeu um irado "eu sei". A pessoa que cruzou o batente daquela porta naquela noite nunca mais retornou. Desceu pelas escadas e caiu na correnteza das ruas da cidade e se perdeu. E mesmo que alguém muito parecido apareça vez ou outra, hora com mágoas, outras ostentando seu ímpeto por recomeços e sua possessão de quadros e mesas e cadeiras, a pessoa que me disse "eu sei" se perdeu escada abaixo, deixando pra trás um tipo de sombra. 

Agora resto eu aqui concebendo silhuetas nas cadeiras que são suas, nos sofás que são seus. 
A casa está arrumada mas de alguma maneira também arruinada. Não há sua caspa no travesseiro, copos diversos espalhados pela casa ou a pia do banheiro manchada de líquidos de lente de todas as manhãs. Não tem meu café da manhã me esperando no microondas, nem músicas compostas com nomes de gatos, nem os pequenos hábitos irritantes que me faziam te amar. Essas coisas não estão ali. Mas eu desconfio que as alucino. Vejo uma sombra cruzando  a porta, outra na beira da pia, outra no chuveiro, pernas cruzadas diante da tv, na mesa à minha frente. Vejo, sinto o cheiro e ouço, mas não ouso tocar. A memória não é pra se tocar. 

Você tem falado da necessidade de buscarmos advogados para os remendos de coisas. Coisas! Os dedos acenam um adeus e ficam os anéis, sempre. Hoje me peguei pensando se há justiça que me possa ajudar com coisas outras. Se posso processar a vida como ela é. Se há indenização possível para tanto investimento. Se há formas de brigar pelo direito de esquecer ou ser esquecido. Iria até a Suprema Corte para que ajustassem que eu conceba tanto afeto e tanta certeza de amar e no entanto seja tão desafortunado. Mas não há sumulas ou jurisprudências. Resta que se brigue pelo que pouco importa. 

II

E já que não me resta alternativa justa, eu fico aqui enterrando as coisas intangíveis, assistindo o barco que aos poucos descreve um arco e que evita atracar no cais (CB). Enquanto enterro os espólios assistido por sombras, afundo no piso rígido da sala. Afundo no metro quadrado mais caro que eu já pisei, na vertical para que, uma vez ido, não ocupe espaço. Desmonto e sinto que o que vivo é feito amputar o braço com um palito de dentes, uma palitada por vez. Por hora me despeço langorosamente, porque amanhã essa casa e essas paredes terão sucumbido de uma vez. 

E eu me pergunto, o que restará quando tanto resto tiver ganhado destino? 
O que será de mim já que não posso voltar a ser o que fui nem reaver o que passou? 

III

Andei refletindo, eu tão cético, que, se há um juízo pós morte, ele há de ser diante de si mesmo. 
Me vejo diante de um Phelipe não agigantado por glórias nem apequenado por misérias, mas de tamanho real, segurando uma balança e me pedindo o que levo no peito. Não os sentimentos, mas a dignidade que reservei pra mim mesmo e o compromisso que tive comigo. É assim que saldarei ou não o custo de haver vivido debaixo desse teto móvel de carne e osso, de dentro do qual terei passado pela vida sem estar nunca de todo desabrigado. Eu sinceramente não sei se tenho estado a altura desse compromisso, nem sei se estive ou se estarei, e não faço ideia do que farei comigo num juízo final eventual. Só espero que não me mande a mim mesmo de volta. Não suportaria decorar a fórmula de bhaskara e remendar o peito tantas vezes outra vez.
 

Phelipe Ribeiro Veiga
01 de março de 2023 - 13h54

"até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi." (Drummond) 

"é sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar" (Gilberto Gil)

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(...)

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