quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Sobre os efeitos cronológicos do sentimento.




Os sentimentos sim é que são os senhores do tempo. 

O amor torna um fim de semana uma vida inteira. O tédio, uma hora uma semana e meia. O sofrimento, seis meses em seis anos. Os afetos pesam a mão nos ponteiros dos relógios, rasuram calendários, nos transportam pra passados, nos empurram pra hipotéticos futuros. O sentir é viajar no tempo e no espaço. É ser e estar desafiando todas as leis da física. É inclusive estar em vários lugares ao mesmo tempo, e, às vezes, dois corpos ocuparem o mesmo lugar no espaço.

Entretanto, há dentre todos, o super efeito da tristeza. A mão mais pesada sobre os ponteiros do relógio. Isso porque o sofrimento não estanca o tempo, ele estraçalha o relógio. Ele não rasura o calendário, ele o arranca da parede e o faz em pedaços, fazendo mosaicos afrontosos no chão da cozinha, de modo que você perde a noção de continuidade e já não sabe de onde veio, pra onde vai, e nem sequer a ordem dos dias da semana. Você não sabe diferenciar o ontem do amanhã, nem que dia é hoje. O sofrimento nos encapsula e nos leva pra um lugar onde ser é doer e estar é sofrer. Tempo e espaço são abolidos violentamente. E se ou quando voltamos desse passeio nefasto, envelhecemos tanto. Envelhecem os sonhos, as esperanças, a credibilidade no bonito das coisas, o apreço na percepção do mundo. Isso porque mais que tudo, o sofrimento nos envelhece o olhar.  Perder-se no vácuo anacrônico pra onde nos leva nos pode custar a vida, podemos esquecer o caminho de volta e isso pode ser a extinção de tanta coisa do que somos, mesmo pros que se preserve um coração funcional no final de tudo. 

Diante do assalto do sofrimento só nos resta achar a máquina do tempo que é o encantamento de voltar a se alegrar. "Voltar" a estar feliz é retroceder, rejuvenescer, retocar a realidade e maquiar as marcas de expressão deixadas, recuperar cores perdidas e, frequentemente, tonalidades novas. Ganharmos de volta, dizem, um tal viço, um tão falado brilho. Mas a marca indelével do passeio no vazio do sofrer jaz ali. Uma cicatriz. Jamais seremos os mesmos. Jamais teremos a mesma idade de novo.

Eu, enquanto flutuo no vácuo, reflito e concluo: 

São sim os nossos sentimentos os senhores do tempo. 
E dentre eles, é sim o sofrimento o mais nefasto inimigo das horas. 

4 de outubro de 2023 (?) 
Phelipe Ribeiro Veiga


"Dentro de um livro na cinza das horas" - (AC)


"Orfeu menos Eurídice: coisa incompreensível!
A existência sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos.
Tu és a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo,
minha amiga mais querida!
Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
." (VM) 


"São mitos de calendário 
tanto o ontem como o agora, 
e o teu aniversário 
é um nascer toda a hora" (CDA)

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Sobre a atitude furta cor.




De fato.

Furta cor a tua atitude tão rasteira, deixando o que restava de nós monocromático. Feito filme antigo, cinema mutado, como um anacronismo. O apreço ao detalhe para machucar, a especificidade minuciosa do toque na ferida aberta e em câmera lenta me surpreende. Incolor, teu furto se deu feito uma mensagem na garrafa que, ao invés de você lançar ao mar, você a atirou na minha cara com uma violência travestida de normalidade. 

É verdade que há um tempo você me disse do normal que é pra você certa agressividade no amor. "Dizemos o que dizemos e depois é só se desculpar. Assim que era", você me disse. E falamos de como pra mim, concessionário doentiamente ilimitado pra ter paz, isso era impraticável. Portanto, não há novidade na agressão, e nem há ignorância da sua parte sobre o que você fez comigo, me conhecendo tanto. A novidade está no rigor ao capricho e ao detalhe. Das múltiplas versões de ti, essa eu ainda não conhecia.  

Desconheço tamanho preciosismo por eu ter convivido tanto com sua escusada personalidade tão usualmente distraída. Torço pra que seja uma habilidade nova. E que ela seja versátil o suficiente pra que você possa exercer a mesma minuciosa apreciação do sutil das coisas não só pra ferir mas também pra fazer feliz. A você e a seja lá quem for. 

Vinicius tinha razão quando dizia que era desprovido de cor todos os momentos de despedida. Você pode não ter me ensinado o porquê, mas definitivamente me mostrou o como.

Merecíamos mais? Quanto a nós eu não sei. 
Quanto a mim, definitivamente sim. 
Não há. 

Phelipe Ribeiro Veiga
02 de outubro de 2023 - 13h46

"Entra pra ver como você deixou o lugar
E o tempo que levou pra arrumar aquela gaveta
Entra pra ver, mas tira o sapato pra entrar.
Cuidado que eu mudei de lugar algumas certezas
Pra não te magoar. Não tem porquê. Pra ajudar teu analista
Desculpa." (Cícero) 
 
"Mais tarde lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. Lembrar-se-ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação. " (VM)

"Giro um simples compassoE num círculo eu faço o mundo (que descolorirá)" (VM)


(...)

Eu vi uma casa se despir. Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por ...