segunda-feira, 27 de março de 2023

Sobre a tranquilidade de um gato pixelado.




As mensagens seguem não lidas, os controles descontrolados e o juízo desajuizado. É que tenho me ocupado insistentemente dos erros de processamento de minha vida. Há algo perdido no encontro entre as novidades de um novo sistema e o sistema legado que trago comigo. E por mais que programe e reprograme, a linguagem talvez seja o problema. Já tentei disquetes, CDs e nuvens, e às vezes parece é que me falta o driver de alguma coisa que se assemelhe com essa tal felicidade. O hardware dá os sinais de uma crise enorme no software dos meus sentimentos. Houve um tempo em que culpava a qualidade de minha placa mãe ou mesmo quão antiquada era a minha forma de conexão. "modem antigo", pensava. Mas uma vez feito o upgrade com roteadores e tudo, tudo segue igual. Depois veio você, um trojan bem intencionado, e o tanto que eu achei que uma limpeza de disco resolveria. Tampouco. Hoje eu sigo sem saber. Noto indiferente os ciberataques que sofro, os vírus que me chegam e eu displicentemente os deixo entrar, mesmo entendendo tão claramente que pra essa vida não há backup possível. Compro o risco alimentado pela esperança de um dia poder Reiniciar e, quem sabe, fluir sem tantas travas e congelamentos. Há algo da mecânica do corpo que impõe um cansaço incompreensível a mim que sonho tanto em ser máquina. Há algo no funcionamento das emoções que impõe uma confusão exaustiva a mim que sonho tanto em ter um sistema minimamente funcional. No fim, com meus olhos de células vivas confusas, desde esse corpo de carne e osso exausto, contemplo a evidente plenitude de um gato dormindo e penso que, ainda que não faça ideia de como chegar lá, as carnes também conseguem de algum lugar emular a paz dos CPUs novinhos em folha. Sonho com a tranquilidade dos felinos e me consolo de poder contemplar pelo meu notebook aceso e ajustado, o vídeo no YouTube de um lindo gato todo construído em pixels luminosos dormindo numa tranquilidade insondável. Suspiro em absoluta tela azul num estado de inveja de difícil processamento. 
Não há. 

27 de março de 2023. 14h22
Phelipe Ribeiro Veiga

"Eu pedi pra ser feita da poeira
Do rastro da estrela que risca o céu
Na regra de 3 aqui dessa conta
Resolvo também esse mundo real" (Maria Céu)

"e seiQue cérebro eletrônico nenhum me dá socorroEm meu caminho inevitável para a morte" (Gilberto Gil) 

sexta-feira, 3 de março de 2023

Sobre as ruínas.





Chego à porta do apartamento que costumava ser casa. 

Respiro.

Ponho minhas coisas no chão do corredor e desabotoo a camisa. Desabotoo a calça. Me dispo de cordão e anéis. 

Respiro. 

Enfio a chave e giro. 
De peito aberto e olhos fechados eu sinto o impacto e ouço o tiro. O ensaio desse momento na minha cabeça foi tão longo e durava há dias, de modo que a dor e o sangue parece que já estavam comigo antes. Vou, sangrando ainda, tomando consciência de que parte do que era resta, parte do que foi se foi, mas não há mais nada ali, embora veja diante de mim tanta coisa. Um saque foi feito mas não às coisas mas sim aos meus sentimentos de mundo. Me roubaram algo por dentro. Flutuo tentando deixar a cena do crime contra o meu peito intacta para qualquer eventual investigação. Paralelamente, algo que não sei nomear de mim fica agonizando na entrada da casa. Passo por cima da coisa caída ensanguentada. 


Dentro. 


Não há nada mais triste que um armário vazio pela metade. 


Nada! 


Para tudo que vai há uma sombra que fica. Para cada espaço vazio existe um naco de angústia dobrada cuidadosamente a ocupar. Há cenas cuidadosamente passadas e penduradas em cabides. Sons. Cheiros. Um mundo de coisas que se foram mas que me assombram pela possibilidade de nunca irem de fato. Escorre das gavetas vazias palavras e caem ensopadas sobre o chão. Em cada lacuna existe uma memória. Nunca soube que saberia de cor o que ocupava cada espaço, sem titubear. Ali o perfume, ali o carregador do barbeador. Ali um porta-retrato. Sei dizer o lugar de cada frasco, cada item, cada coisinha. Quase as vejo ali. Agonizo na minha capacidade de lembrar. Meu dom dói (IA). 

Nas paredes, enormes feridas de marcas amareladas dos quadros retirados, as paredes sujas de uma sujeira que tinta nenhuma cobrirá, nenhum quadro novo substituirá. Por dentro das feridas, pela fresta delas, vejo dias, meses, anos. Os que vivemos, os que não vivemos, os que jamais viveremos. Passado, presente e futuro, em forma de concreto e argamassa ferida. E se encosto o ouvido na purulenta ferida das paredes, ouço seu riso. E já não há o que fazer. Se rastreio nas coisas tomadas a falta de apreço, dói. Se noto nas coisas deixadas o carinho, dói também. Me sinto uma enorme dor com pernas e olhos tendo anexo feito uma espinha na testa a pessoa que sou. 

Pobre casa que já não é lar. É uma enorme ruína. Um não sei quê com uma alta torre na qual queima um fogo brando, quase a se apagar na chuva dos afetos e no vento dos eventos, sob a erosão de um tempo que conta as horas em dias e os dias em semanas e as semanas em anos. Já houve esplendor ali, e nosso amor, na concretização de nosso lar, já foi farol para mim e pra você, e quem sabe até não só. Nosso amor já foi lugar. Já me foi refúgio e também o meu lugar favorito. Hoje é um projeto de sitio arqueológico de uma civilização que se consumiu a si mesma sem deixar explicações. Perguntarão os aventureiros que encontrarem as ruínas: o que aconteceu aqui? 

Eu me juntarei a eles a perguntar: 

O que aconteceu aqui? 
O que aconteceu aqui? 
O que aconteceu aqui? 

A pergunta ecoará por dentro das gavetas vazias, das feridas nas paredes e da ausência brutal de nós sem enquanto. 
Não há.


Phelipe Ribeiro Veiga
03 de março de 2023. 11h07

"Estala, coração de vidro pintado" - (Fernando Pessoa) 

"Eu ando tão dodói
Mas tão dodói
Que quando ando dói
Quando não ando dói" (Itamar Assumpção e Luiz Tatit)

"Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização" - ( Chico Buarque)

quarta-feira, 1 de março de 2023

Sobre três pedaços que compõem os restos.


I

Naquela noite quando você cruzou a porta e eu me despedi dizendo que te amava, você me respondeu um irado "eu sei". A pessoa que cruzou o batente daquela porta naquela noite nunca mais retornou. Desceu pelas escadas e caiu na correnteza das ruas da cidade e se perdeu. E mesmo que alguém muito parecido apareça vez ou outra, hora com mágoas, outras ostentando seu ímpeto por recomeços e sua possessão de quadros e mesas e cadeiras, a pessoa que me disse "eu sei" se perdeu escada abaixo, deixando pra trás um tipo de sombra. 

Agora resto eu aqui concebendo silhuetas nas cadeiras que são suas, nos sofás que são seus. 
A casa está arrumada mas de alguma maneira também arruinada. Não há sua caspa no travesseiro, copos diversos espalhados pela casa ou a pia do banheiro manchada de líquidos de lente de todas as manhãs. Não tem meu café da manhã me esperando no microondas, nem músicas compostas com nomes de gatos, nem os pequenos hábitos irritantes que me faziam te amar. Essas coisas não estão ali. Mas eu desconfio que as alucino. Vejo uma sombra cruzando  a porta, outra na beira da pia, outra no chuveiro, pernas cruzadas diante da tv, na mesa à minha frente. Vejo, sinto o cheiro e ouço, mas não ouso tocar. A memória não é pra se tocar. 

Você tem falado da necessidade de buscarmos advogados para os remendos de coisas. Coisas! Os dedos acenam um adeus e ficam os anéis, sempre. Hoje me peguei pensando se há justiça que me possa ajudar com coisas outras. Se posso processar a vida como ela é. Se há indenização possível para tanto investimento. Se há formas de brigar pelo direito de esquecer ou ser esquecido. Iria até a Suprema Corte para que ajustassem que eu conceba tanto afeto e tanta certeza de amar e no entanto seja tão desafortunado. Mas não há sumulas ou jurisprudências. Resta que se brigue pelo que pouco importa. 

II

E já que não me resta alternativa justa, eu fico aqui enterrando as coisas intangíveis, assistindo o barco que aos poucos descreve um arco e que evita atracar no cais (CB). Enquanto enterro os espólios assistido por sombras, afundo no piso rígido da sala. Afundo no metro quadrado mais caro que eu já pisei, na vertical para que, uma vez ido, não ocupe espaço. Desmonto e sinto que o que vivo é feito amputar o braço com um palito de dentes, uma palitada por vez. Por hora me despeço langorosamente, porque amanhã essa casa e essas paredes terão sucumbido de uma vez. 

E eu me pergunto, o que restará quando tanto resto tiver ganhado destino? 
O que será de mim já que não posso voltar a ser o que fui nem reaver o que passou? 

III

Andei refletindo, eu tão cético, que, se há um juízo pós morte, ele há de ser diante de si mesmo. 
Me vejo diante de um Phelipe não agigantado por glórias nem apequenado por misérias, mas de tamanho real, segurando uma balança e me pedindo o que levo no peito. Não os sentimentos, mas a dignidade que reservei pra mim mesmo e o compromisso que tive comigo. É assim que saldarei ou não o custo de haver vivido debaixo desse teto móvel de carne e osso, de dentro do qual terei passado pela vida sem estar nunca de todo desabrigado. Eu sinceramente não sei se tenho estado a altura desse compromisso, nem sei se estive ou se estarei, e não faço ideia do que farei comigo num juízo final eventual. Só espero que não me mande a mim mesmo de volta. Não suportaria decorar a fórmula de bhaskara e remendar o peito tantas vezes outra vez.
 

Phelipe Ribeiro Veiga
01 de março de 2023 - 13h54

"até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi." (Drummond) 

"é sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar" (Gilberto Gil)

(...)

Eu vi uma casa se despir. Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por ...