segunda-feira, 23 de maio de 2022

Sem título.

O dia chega.
Há uma fina camada que me separa 
de tudo o mais. 
De todos. 
De mim mesmo. 

Assisto do lado de cá até mesmo as reações que eu teria em hipótese, 
mas não tenho. 
A cortina é transparente de cá pra lá. 
Opaca de lá pra cá. 
Não me veem olhar. 
Eu assisto, silencioso, 
num entre lá e cá, 
num "tédio de ser" e de estar, 
e sem saber o que fazer. 
Sem querer fazer.

Ninguém te conta: 
Algo se parte gradualmente em cada partida, 
e, feito as feridas da Confiança, 
não cicatrizam jamais. 

O que resta se esconde em gavetas, arquivos digitais 
e armários de faz de conta.
O que resta é feito uma farpa na sola do pé esquerdo. 

Enquanto ignoro o incômodo 
se acumulam os compromissos e prazos. 
Assisto a pilha de afazeres crescer. 
 
O instante jaz feito um cigarro 
descansando num cinzeiro roto,
queimando sem que eu o trague.

O cinzeiro eu deixo pousado 
sobre uma pilha de calendários antigos e novos, 
rasurados todos. 
Deixo que o instante queime num misto de medo e desejo
de que, antes que se consuma,
uma fagulha se cinza se alastre a queimar os dias e meses e anos.
Não há. 

Phelipe Ribeiro Veiga
23 de maio de 2022, 12h06

"E dessas horas ardentes ficou esta cinza fria. Esta pouca cinza fria..." (Manuel Bandeira)


 


domingo, 1 de maio de 2022

Sobre os quadros na parede.




De volta àquela casa anterior 
sinto tudo mudado.

Novos lugares, novos olhares. 
O conhecido, desconhecido.
O de sempre, nunca mais.

Havia uma sensação de descarrilamento do que antes 
parecia certo e concreto feito um destino. 
Um descontrole que se dá por alternativa única. 
A parede mais escura do fundo me lembra 
dessa escuridão como rumo 
que amedronta e excita 
feito a própria vida.

Eu sento e olho ao redor as velhas coisas com ares novos e poeira antiga.

Será que fui eu quem mudei? 
Andei tanto. Parei tanto. Corri tanto.
Na contagem de suspiros eu fui à Lua e voltei.

Paro.
Respiro compassado num corpo que ainda habita, 
parcialmente, um tempo passado. 

Encaro os quadros e a ousadia deles 
de permanecerem os mesmos, no mesmo lugar.

O da esquerda marcando a parede amarelada. 
O do meio descascando a ponta superior esquerda.
O da direita ainda torto como estava quando eu parti.

Os quadros me lembram do que resta intocável: 

Nem tudo muda.
Talvez nem dentro de mim. 


Phelipe Ribeiro Veiga
2 de maio de 2022, 01h57

"Mudaram as estações. Nada mudou. Mas alguma coisa aconteceu. Tá tudo assim tão diferente." Renato Russo. 


(...)

Eu vi uma casa se despir. Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por ...