quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Sobre o desejo de ser outro.




Hoje eu queria ser outro.
Me projetar pra dentro de um espelho de armário daqueles que a gente colocava em banheiros guardando escova e pasta de dentes. 
Queria me olhar, mais que despedindo, me demitindo. 
Então, abrir a porta e encontrar dentro uma coleção de possibilidades. 

Outro pai e outra mãe. 
Outra localidade. 
Outra escola e outros amigos. 
Outra língua, talvez, com outro vocabulário
Eu queria ter outro começo, 
e trocaria até meu fim que ainda desconheço.

Variar os fracassos, diversificar as desilusões e trocar os traumas por outros, as cicatrizes de lugar. Pagaria o preço de me despedir de tudo que fosse bom em troca de algo que fosse distinto. Há um cansaço enorme de ser eu.

Hoje eu só queria que outra pessoa chorasse minhas lágrimas, respondesse meus questionamentos cortantes. Alguém que me defendesse de mim e dos demais. 
Alguém que fizesse o que eu não sei e dissesse o que eu não posso. 
Alguém que, mesmo sendo da exata mesma estatura que eu, alcançasse o que eu não alcanço. 
Queria que outra pessoa gritasse os gritos que eu carrego entalados. 


Hoje eu trocaria tudo por qualquer coisa que fosse outra.
No entanto, não há saída de mim.


Phelipe Ribeiro Veiga
Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 2022. 21h08. 

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam. (Fernando Pessoa)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Sobre as quartas-feiras de minha infância.

 Eu me lembro. 

Quarta feira não era dia de escola.

Era dia de acordar antes do sol e ser conduzido de mãos dadas com um estranho qualquer. Um ônibus que levava a outro que levava a outro. O cheiro de poeira do banco de borracha, o vento da janela e os repetidos “não coloque a cabeça pra fora”. As mariolas e os videogames vendidos de uma rodoviária à outra. Era um amor educado. Eu ia porque me levavam e eu só descobria que queria ir quando já estava ali. 


Havia o portão enorme. A fila cheia de lamúrias e histórias, mães, tias, avós. A revista. E depois a entrada.


Enfim, a voz, os olhos claros, o toque que eu nem sabia que sentia falta mas sentia. Essa ausência de saudade que eu me sentia tão culpado quando pequeno. Eu não entendia ainda, mas é que criança é esse animalzinho que se distrai até de si, e, protótipo de poeta, faz brincadeira até dos seus sofrimentos. Sofre de brincadeira, brinca de sofrimento. Enigma que sorri e chora muitas vezes ao mesmo tempo. Era assim. A culpa era um efeito colateral da criança "adulterada" que fui.


Lá dentro era só uma tarde por semana, eu nem sei se todas as semanas. 

Agrados. Agravos. Uma eternidade que cabia entre as 10 da manhã e as 2 da tarde. 


Depois, era a hora de voltar. Depois, era choro e realidade. Dura e fria feito os ferrolhos que cindiam o mundo de dentro do de fora. Eu chorava silencioso e tinha as lagrimas acompanhadas pelas dela, secas por dois polegares como sempre tinha sido desde que me lembro por gente, e certamente antes até. 


Sabia que não podia ficar. Que ela não podia ir comigo. Sabia que a coisa era como era. Era a mais pura e impotente tristeza sem demanda nenhuma. Não havia palavra ou pedido. Eu iria embora. Ela iria ficar. Derrotado, eu ia embora de mãos dadas com a solidariedade estranha, ela ficava. Era cedo demais pra isso e eu era obrigado a entender os imperativos categóricos que a vida as vezes impõe à gente. 


A viagem de volta era outra. 

Lenta, sem videogames nem mariolas nem janelas. 

Era um langoroso imaginar. 

Uma falta já sabida e ainda sem possibilidade de distração 

mesmo pra criança que fui. 

Eu voltava de lá meio idoso a cada ida. 

Chegava em casa de noite. 

Quinta-feira era dia de escola. 


Vem daí? 

Sei lá. 


Phelipe Ribeiro Veiga

Rio de Janeiro, 26 de dezembro de 2022. 


(...)

Eu vi uma casa se despir. Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por ...