sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Sobre o meu lado da história.

Há sempre muitas maneiras de contar uma história, e a nossa eu sempre escolherei contar mesmo é pelo começo. E não porque ela tenha caído no clichê dos dias ou na rotina ensossa dos que se deixam carcomer pelo tédio e pela seguridade de um amor tácito e palpável. Não. Mas porque admiro a integridade do que fomos capazes de ser e fazer, e as boas histórias se fazem num arco crescente que carece de ser contada é pelo começo mesmo. A nossa, pra mim, será sempre assim. 

Foi com você que aprendi a gravidade das conversas, a não banalizar as reclamações e da importância do entendimento, fazendo valer bem mais o que digo do que o que falo. Aprendi que posso ser amado de modos distintos aos meus modos de amar. Aprendi que a leveza precisa ter seu lugar. Aprendi limites e aprendi da falta que faz perdê-los de vista. Aprendi o respeito e aprendi a nuclear importância da admiração. Foi em nós que aprendi a parceira e o companheirismo em sentidos para os quais eu nunca tinha me deixado ser encontrado antes. Compartilhávamos o pão sob os céus dos quatro pontos cardeais. Você me ensinou a ter pequenas e grandes coragens e a dar grande importância aos meus pequenos medos. Você me ensinou que dá pra tentar um pouco de tudo e que não custa acreditar. Além disso, também me ensinou a gostar de cebola e a beber café sem açúcar. 

Por essas e tantas coisas é que o que levo de ti não é o que a mágoa mancha, o que o medo da perda arranha nem o que o apego, tornado em aperto, acabou por produzir. O que levo é o homem com olhar e olhos de menino choroso ao pé de um barco sob um céu longe daqui me explicando que não sabia o que fazer, mas que sabia o que queria. Levo a lembrança de sua risada que ri com o corpo todo. O abraço em fuga. Os hábitos estranho e engraçados. As composições diárias e os apelidos esquisitos. A companhia que inexplicavelmente me fez ficar tanto e me faz ser tão pesado partir. Guardo de ti experiências enormes, saudades gigantescas e um grande amigo de quem sempre sentirei falta. Uma vez você, raivoso, me disse não ser extraordinário. E talvez não o seja. Talvez tampouco eu o seja. Mas foi extraordinário o que fomos capazes de ser. Foi e terá sido, pra sempre, uma grande aventura. 

Quanto a você, do seu lado, sei pouco ou nada. Mas estou em paz. Eu e minha saudade nos sentamos tarde sim, tarde também a lamuriar e trocar lembranças, e rimos de umas, choramos de outras e, fazendo o melhor que podemos, e em prol de que lembrar seja o mais gostoso possível, desviamos ao máximo dos ressentimentos, estes tão naturais de histórias longas. O meu lado da história é esse e de mim ninguém pode tira-lo. É o meu pra sempre que deu pra fazer. É pitoresco, fantasioso como todo amor precisa ser pra poder ser, e é triste como só as melhores lembranças necessariamente são. Mas, acima de tudo, ainda que só e ainda que só meu, é meu. Pra sempre. 

22 de setembro de 2023, 19h50
Phelipe Ribeiro Veiga. 

"Não, nada irá neste mundo
Apagar o desenho que temos aqui
Nem o maior dos seus erros
Meus erros, remorsos
O farão sumir.
(...) 
Nada, nem que a gente morra
Desmente o que agora
Chega à minha voz" (Caetano Veloso) 

"Barreremos cada uno ‘pa’ su casa
y quizá aprenderemos cuatro cosas nuevas,
no se borrará tu olor por más que llueva,
que el amor que deja huella no fracasa." (Juan Gomez Canca) 

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Sobre um corolário de sombras.





Pouco a pouco as coisas vão ganhando titularidades e a casa onde moro vai sendo habitada por um mobiliário estranho. Nem os quadros estão mais nos mesmos lugares, apesar de não terem se movido um centímetro. Talvez porque o que mudou foram as paredes. Faz parte desse meu cotidiano trânsito entre dois mundos. Um pé no passado e outro no presente, sob um abismo obscuro dividindo os dois a que apelidei de futuro. 

Vejo uma sombra passando da cozinha pro quarto, voltando do banheiro pra sala. Vivo eu e ela, a sombra. A sombra cobre a metade do quarto, da sala, do sofá e do meu pensamento. Dotada de toda uma autonomia, caminha daqui para acolá e faz suas coisas, e cantarola num eco distante. Ponho música alta pra ensurdecer-me e finjo não notar o fantasmagórico mover de coisas na cozinha quando já não há ninguém. Às vezes me deixa copos pra eu lavar. Eu lavo. Ela também me deixa contas pra eu pagar. Eu pago. É tributário o meu convívio com ela. 

Hoje o acordar é um gradual desvanecer do mundo ao meu redor, é assistí-lo (a) perder resoluções. E pouco a pouco a sombra dá as mãos a uma ciranda de outras sombras, compondo o pesado corolário que levo sobre a cabeça. É minha coleção de despedidas. Prêmios de minha incompetência em fazer o tempo parar. Em fazer durar chuvas de verão ou encerrar estios antes que me sequem as lavouras todas. É a repercussão desse meu timing desencontrado de todos os demais ou quem sabe é só pura má sorte ou azar, ou os dois, caso não sejam a mesma coisa. 

Ouço as portas se fecharem, todas. O virar de chave, várias. As costas caminhando em direção às escadas ou aos elevadores ou portas. Fico eu, sempre igual e na mesma situação, mão nas chaves, testa colada à madeira das portas, olhos fechados, só e assombrado pela sobra última que levo presa à planta dos pés e que me aponta o dedo acusatoriamente. Se ao menos dentre tanta sombra uma me servisse para sentar-me embaixo dela e ler um livro. Mas nem isso. Apenas me pesam a cabeça e o peito. Apenas. 

Não há.

Phelipe Ribeiro Veiga
Rio, 18 de setembro de 2023. 11h52


"Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de seccionar aqueles dois mundos que eram ele e ela. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se muito longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce." (Vinicius de Moraes) 

"It's strange what desire will make foolish people do" - Chris Isaak

(...)

Eu vi uma casa se despir. Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por ...