terça-feira, 22 de agosto de 2023

Sobre a recordação de uma recordação de uma recordação de tempos mais eróticos.




Não havia sequer uma porta. Esse batente que em ambientes fechados emoldura todas as partidas ali não existia.  Havia sobre nós apenas o céu estrelado que emoldura todas as coisas vivas. O vinho gotejava da boca da garrafa e se misturava às areias embriagando o corpo inteiro da praia. O mar se esgueirava curioso praia acima, sorrateiramente espiando o nosso transe e a nossa transa. Tudo era maresia e uma composição impossível entre silêncio e canção. Seus poros suavam mar e evaporavam estrelas. Suspirávamos ventanias litorâneas. Nós e a praia e o céu havíamos nos unido. Éramos uma só existência. Eu sei disso porque quando chegou o momento eu senti as areias pulsarem, o vento gemer, o mar ejacular sobre a terra e o céu se contrair. A natureza inteira gozou conosco. E foi naquela noite enquanto você, emoldurado de amanhecer, se lavava no mar ainda excitado por nós que eu descobri que Caetano também cantava em inglês. Às vezes me pego pensando em quanta saudade aquela praia não deve sentir de nós! 

Phelipe Ribeiro Veiga
21 de fevereiro de 2014 - 20:13
(postado em 22 de agosto de 2023 às 13h00)

No verde lençol da areia 
Um marco ficou cravado 
Moldando a forma de um corpo 
No meio da cruz de uns braços. 
Talvez que o marco, criança 
Já o tenha lavado o mar 
Mas nunca leva a lembrança 
Daquela noite de amores 
Na praia do Vidigal. (Vinicius de Moraes)

domingo, 20 de agosto de 2023

Sobre o desajeito e as formas de amar.




Muito se fala de como o amor é o mais belo dos sentimentos. Fala-se de valorizar o amor. De sua raridade. De não deixa-lo escapar. De se brigar por ele. Quando o que mais importa é a forma com que se ama ou se é amado. O encontro com o amor se faz épico ou trágico a depender do modo como se dá esse encontro.

Afinal, faz menos estrago um inimigo que nos odeia de maneira ética do que um amante que nos ama de modo desajeitado. É grave a coisa do desajeito. É um bicho em forma de comportamento que deforma qualquer sentimento. É perdoável que às vezes ele advenha da falta de prática, da inexperiência ou até da incompetência. E é verdade também que há por aí os bem intencionados incapazes da busca por se amar bem, e que deus nos proteja desses pequenos monstrinhos inimputáveis. Destes não nos restará sequer o direito de nos ressentirmos. Eles não tem culpa de nascerem assim. 

Mas como diferenciar a ignorância como condição da ignorância como adesão em forma de álibi e estratégia para obtenção de seus consequentes privilégios? Da ignorância como um tipo de anistia a que se apela para não se ajeitar no seu modo de amar? Há esse caso em que um certo tipo de índole configura uma postura indolente, não zelosa e preguiçosa diante do labor cansativo advindo desse compromisso estruturante do encontro saudável de dois (ou mais), que é o bem viver. É a preguiça que, acumulada, se desvela num desmerecimento absoluto. Quem tem preguiça de amar de um jeito bom não mereceria ser amado de jeito nenhum. Para a  sorte destes (e para o azar de muitos) o amor não é questão de mérito.

Fato é que sem dedicarmos tempo a reconhecermos no amor uma forma, podemos estar apoiando a vida num pedregulho cortante, ou perdendo a possibilidade de amarmos melhor. Há que se compor. Há que se esculpir com suor e esforço, o que se apresente digno de mútua contemplação. E é essencial que se goste de como se gosta e de como se é gostado. Faz sentido admirar-se e respeitar-se enquanto sujeito que ama da melhor maneira que consegue. Isso nos condiciona também enquanto recebedores do amor de outros. Além disso, importa olhar pro amor que se faz junto e esboçar um suado sorriso de satisfação. Um gozo que alimenta a gente de uma certa fome que reside em algum lugar que fica entre a nossa pele e o resto do mundo. 

Porque o amor é para isso. Para contemplação e saciedade dessa fome estranha que parece nascer com a gente. Uma urgência de pertencer e de se aconchegar. Feito uma busca por um novo útero que nos caiba de algum modo. Um refúgio para esse "por enquanto" a que chamamos vida. O problema das fomes é a condição na qual elas se dão. A depender do tamanho da fome, migalhas se tornam banquetes. A depender do desespero por aconchego, um pedregulho pode se confundir com obra de arte abstrata só pra gente arranjar no quê se apoiar. E com o tempo a gente se acostuma às dietas mais indignas e às posições mais desconfortáveis. 

Umas vez o escultor disse que a maneira mais rápida de descobrir as partes essenciais de uma escultura era empurrá-la de um penhasco. Eu diria que quem chega ao ponto de empurrar penhasco abaixo o que tão duramente custou esculpir, pode ser que não compreenda o árduo trabalho de amar. É a forma a que se deve valorizar, e é pela forma que devemos lutar. Quem atira o amor morro abaixo para descobrir o quê de essencial há, ou é por que o essencial já se perdeu de vista, ou porque talvez nunca tenha estado ali, ou ainda porque é mesmo só mais um desajeitado. 

20 de agosto de 2023. 21h52
Phelipe R Veiga





terça-feira, 8 de agosto de 2023

Sobre a queda da Babilônia.

 


De longe, depois de um longo silêncio, houve o estalo. 


(...)


Lascou feito um grito rochoso desesperado, e, depois de um breve silêncio pontilhado por pequenas pedrinhas rolando, começou a desmoronar em som crescente.

de estalo à ruído, 

de ruído à estrondo

de estrondo ao som do fim de um mundo. 

Era no meu peito a tragédia, porém se expandia por todo meu corpo. Ecoava pelos meus braços e pelas minhas mãos trêmulas sacudindo até as pontas dos meus dedos. Minhas pernas contraíram-se de modo a sustentar o que restava de pé, e o fez, suportando o peso inteiro do desastre.

Os enormes pedaços caíram nos mares que ilhavam o monumento criando gigantescas ondas nos meus olhos salgados e esverdeados que engoliram tudo. Afogaram meus olhos de tal modo que o mundo ao meu redor ainda jaz submarino. 

O tremor do desmoronamento se pôde sentir até pelos pensamentos mais simplórios que, desatentos cruzando minhas pontes sinápticas, caíram vários para um esquecimento de nunca mais. Conexões se romperam e áreas inteiras foram feitas estéreis e isoladas das minhas intensas e coloridas tempestades neuronais. Uma densa nuvem de poeira subiu pescoço acima, passando pela garganta, escalando pelo tronco encefálico e cobrindo tudo, inclusive as memórias. Ali a visibilidade ainda é nenhuma. O estrago, desconhecido.

Pelo romper das barragens que o desmoronamento do peito causou, a boca foi drenada, ficando apenas um gosto amargo do lodo deixado pelas palavras que, feito peixes afogados no seco, saltavam naqueles espasmos característicos de quem já não vive mas ainda não morre. 

Meus ouvidos, sempre atentos ao exterior, ensurdeceram-se pelo ressoar intenso que recorria cada pedaço do meu interior. Estava ensurdecido pro mundo pelo som que ecoava vindo de dentro de mim. 

Meus poros vazaram pó e vapor quente. Feito uma chaleira, gritavam. Clamavam e avisavam: Caiu! Caiu! 

Meu peito desmoronou. Minha alma, tectônica, moveu-se e deslocou meu norte de um modo que ainda não o encontro. Minha dor entrou em erupção. Meu corpo ainda treme inteiro sem saber quais estruturas foram comprometidas e o que mais ainda está por cair.
 
Enquanto isso, meus poros seguem gritando: 

"Caiu! Caiu!"

08 de agosto de 2023 - 14h19
Phelipe Ribeiro Veiga


"A Babilônia caiu de repente e ficou arruinada. Lamentem por ela! Consigam bálsamo para a ferida dela; talvez ela possa ser curada. "Gostaríamos de ter curado Babilônia, mas ela não pode ser curada; deixem-na e vamos cada um para a sua própria terra, pois o julgamento dela chega ao céu, eleva-se tão alto quanto as nuvens." (Jeremias, Cap 51, vers. 8 e 9) 


"Preste atenção, querida
De cada amor, tu herdarás só o cinismo
Quando notares, estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés" (Cartola) 





quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Sobre dez-acertos de contas com a realidade.




Desabrigo.
Desproporção. 
Desequilíbrio.
Desamparo.
Desacerto.
Descompromisso.
Destituição.
Desmoronamento.
Desenlace.
Desilusão.

E no meio de tanto prefixo desafixado, 
descolados feito fita adesiva recolocada, 
é que, 
pela via da d'existência, 
resiste ainda a frágil alternativa 
queimando feito vela ao vendaval: 
me resta a inútil tentativa de
desabrochar. 

Rio de Janeiro, 2 de agosto de 2023. 22h00
Phelipe Ribeiro Veiga

"Que esterco metafísico os meus propósitos todos!

Uma angústia, 

Uma desconsolação da epiderme da alma, 

Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço... (...)

Dêem-me de beber, que não tenho sede!" (Fernando Pessoa)


"I'll talk but you won't listen to me
And I know your answer already" (
Sinead O'connor)








(...)

Eu vi uma casa se despir. Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por ...