sexta-feira, 3 de março de 2023

Sobre as ruínas.





Chego à porta do apartamento que costumava ser casa. 

Respiro.

Ponho minhas coisas no chão do corredor e desabotoo a camisa. Desabotoo a calça. Me dispo de cordão e anéis. 

Respiro. 

Enfio a chave e giro. 
De peito aberto e olhos fechados eu sinto o impacto e ouço o tiro. O ensaio desse momento na minha cabeça foi tão longo e durava há dias, de modo que a dor e o sangue parece que já estavam comigo antes. Vou, sangrando ainda, tomando consciência de que parte do que era resta, parte do que foi se foi, mas não há mais nada ali, embora veja diante de mim tanta coisa. Um saque foi feito mas não às coisas mas sim aos meus sentimentos de mundo. Me roubaram algo por dentro. Flutuo tentando deixar a cena do crime contra o meu peito intacta para qualquer eventual investigação. Paralelamente, algo que não sei nomear de mim fica agonizando na entrada da casa. Passo por cima da coisa caída ensanguentada. 


Dentro. 


Não há nada mais triste que um armário vazio pela metade. 


Nada! 


Para tudo que vai há uma sombra que fica. Para cada espaço vazio existe um naco de angústia dobrada cuidadosamente a ocupar. Há cenas cuidadosamente passadas e penduradas em cabides. Sons. Cheiros. Um mundo de coisas que se foram mas que me assombram pela possibilidade de nunca irem de fato. Escorre das gavetas vazias palavras e caem ensopadas sobre o chão. Em cada lacuna existe uma memória. Nunca soube que saberia de cor o que ocupava cada espaço, sem titubear. Ali o perfume, ali o carregador do barbeador. Ali um porta-retrato. Sei dizer o lugar de cada frasco, cada item, cada coisinha. Quase as vejo ali. Agonizo na minha capacidade de lembrar. Meu dom dói (IA). 

Nas paredes, enormes feridas de marcas amareladas dos quadros retirados, as paredes sujas de uma sujeira que tinta nenhuma cobrirá, nenhum quadro novo substituirá. Por dentro das feridas, pela fresta delas, vejo dias, meses, anos. Os que vivemos, os que não vivemos, os que jamais viveremos. Passado, presente e futuro, em forma de concreto e argamassa ferida. E se encosto o ouvido na purulenta ferida das paredes, ouço seu riso. E já não há o que fazer. Se rastreio nas coisas tomadas a falta de apreço, dói. Se noto nas coisas deixadas o carinho, dói também. Me sinto uma enorme dor com pernas e olhos tendo anexo feito uma espinha na testa a pessoa que sou. 

Pobre casa que já não é lar. É uma enorme ruína. Um não sei quê com uma alta torre na qual queima um fogo brando, quase a se apagar na chuva dos afetos e no vento dos eventos, sob a erosão de um tempo que conta as horas em dias e os dias em semanas e as semanas em anos. Já houve esplendor ali, e nosso amor, na concretização de nosso lar, já foi farol para mim e pra você, e quem sabe até não só. Nosso amor já foi lugar. Já me foi refúgio e também o meu lugar favorito. Hoje é um projeto de sitio arqueológico de uma civilização que se consumiu a si mesma sem deixar explicações. Perguntarão os aventureiros que encontrarem as ruínas: o que aconteceu aqui? 

Eu me juntarei a eles a perguntar: 

O que aconteceu aqui? 
O que aconteceu aqui? 
O que aconteceu aqui? 

A pergunta ecoará por dentro das gavetas vazias, das feridas nas paredes e da ausência brutal de nós sem enquanto. 
Não há.


Phelipe Ribeiro Veiga
03 de março de 2023. 11h07

"Estala, coração de vidro pintado" - (Fernando Pessoa) 

"Eu ando tão dodói
Mas tão dodói
Que quando ando dói
Quando não ando dói" (Itamar Assumpção e Luiz Tatit)

"Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização" - ( Chico Buarque)

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(...)

Eu vi uma casa se despir. Era uma despedida. Se despia dos quadros das paredes e exibia as marcas do tempo como um corpo que, após usar por ...